Quinta-Feira, 28 de novembro de 2024
Quinta-Feira, 28 de novembro de 2024
No próximo domingo (7) são estimados mais de dois milhões de pessoas nas ruas do centro de Belém para acompanhar a 231° edição do Círio de Nazaré, uma das maiores festas católicas do mundo.
A devoção à Nossa Senhora de Nazaré leva a multidão de devotos à percorrer 3,1 km em um dia que costuma ser muito ensolarado na capital paraense.
Promesseiros seguram na corda, em sacrifício e fé na procissão do Círio 2022 — Foto: Brenda Rachit
Grande parte destes fiéis paga promessas com artefatos de cera carregados sobre a cabeça, disputa espaço durante o trajeto da procissão para tocar a corda do Círio ou até mesmo peregrina de joelhos, agradecendo uma graça alcançada ou suplicando por um sonho ou pedido.
Mas será que a fé é o único motor responsável por alavancar e impulsionar uma singela descoberta a um "mar de gente"?
De acordo com as pesquisas do historiador e antropólogo da Universidade Federal do Pará (UFPA), Márcio Couto, após um homem chamado Plácido encontrar, às margens do rio Murucutu (atual avenida Nazaré) a imagem da mãe de Jesus, devotos iniciaram visitações e novenas na área.
Imagem Original de Nossa Senhora de Nazaré encontrada por Plácido, que fica na Basílica de Nossa Santuário de Nazaré, em Belém. — Foto: Marco Santos / Agência Pará
"Em 1793, o governador Francisco de Sousa Coutinho teve a ideia de organizar uma feira de produtos regionais do Pará. Preocupado com o sucesso da feira, ele escolheu exatamente o período em que os devotos costumavam fazer as novenas em homenagem a santa encontrada por Plácido", revelou o pesquisador.
Além da feira, Francisco de Souza Coutinho determinou a realização de uma romaria com a imagem por Belém. Assim, conforme os estudos do antropólogo, se realizou o primeiro Círio de Nazaré, na tarde do dia 8 de setembro de 1793.
Primeiro, "do povo"
Foto mais antiga do Círio, segundo o levantamento do historiador Márcio Couto Henrique, de 1895. Ela foi publicada na coluna Jornal Dominical de Augusto Meira Filho, no jornal A Província do Pará, no dia 30 de janeiro de 1977. — Foto: Acervo
Pode-se dizer que foi o "case de sucesso" de Plácido, que com seu achado inspirou para além da própria comunidade e muitas gerações a seguir.
Segundo ele, outro especialista no assunto, o pesquisador Eidorfe Moreira, reforça que a procissão se impôs por si mesmo e se oficializou em virtude da própria popularidade.
"Assim, o Círio nasceu em torno de uma devoção que já era popular antes mesmo de sua oficialização pelo poder público e pela igreja. Nos jornais do século XIX, o Círio de Nazaré era definido como festa 'popular' e 'popularíssima'. Essa dimensão popular, desde suas origens, certamente nos ajuda a entender o crescimento da devoção e da festa a cada ano", explicou Márcio Couto.
De 1793 aos próximos capítulos
Círio de 1917, publicada no jornal Estado do Pará na mesma época. O registro mostra um aglomerado de pessoas em frente à Basílica. — Foto: Acervo
Segundo o padre Dubois, no livro “A devoção à Virgem de Nazaré”, de 1953, participaram do primeiro Círio, em 1793, cerca de 10 mil pessoas.
"O aspecto comercial da Festa de Nazaré também acompanha essa devoção desde suas origens. Afinal, o primeiro Círio surgiu atrelado a uma feira, estabelecida pelo então presidente da província, em 1793. Círio sempre foi, também, tempo de movimentar o comércio e a economia local", destacou o pesquisador.
De acordo com o professor, o crescimento maior no número de participantes no Círio ocorreu ao longo do século XX:
Imagens do Círio de 1951, publicadas no impresso O Liberal em 15 de outubro daquele ano. — Foto: Acervo
De acordo com o antropólogo Isidoro Alves, referindo-se aos Círios de 1974 e 1975, “para a população de Belém, estimada [na época] em 800 mil habitantes, isto significa que perto de três quartos desse total participam do Círio”.
"Em 1989, estimou-se mais de um milhão e, em 2022, a estimativa foi de 2,5 milhões de pessoas", lembrou Márcio. O último foi o primeiro pós-pandemia. Aliás, nem mesmo a Covid-19 foi capaz de parar os devotos e promesseiros em 2020 e 2021, quando não houve procissões oficiais presenciais, mas mais de 400 mil pessoas foram às ruas.
Por outro ângulo
Programação do Círio inclui parque de diversões, projeções e ilumação especial no trajeto. — Foto: Ascom Círio de Nazaré / Agência Belém / Lais Teixeira
Segundo Márcio, este fenômeno tem a ver com o aumento da devoção a Nossa Senhora de Nazaré, com o aumento da população e com a melhoria do sistema de transportes no Brasil, "mas, existe um dado que, apesar de silenciado, constitui um dos principais responsáveis pelo crescente aumento de pessoas no Círio de Nazaré: a apropriação da Festa de Nazaré pela indústria do turismo".
Desde o início da década de 1950 os jornais paraenses registraram a chegada de turistas estrangeiros a Belém por ocasião do Círio de Nazaré, como expôs as pesquisas do antropólogo.
Arquibancadas e incentivos
Arquibancadas montadas para o Círio. — Foto: g1 Pará / Alexandre Yuri
"No Círio de 1964, a prefeitura de Belém armou um palanque na avenida Presidente Vargas para que os turistas pudessem, mediante pagamento, assistir a passagem da procissão principal do Círio, prática que continua até os dias de hoje", pontuou Márcio.
Em 1970, os departamentos estadual e municipal de Turismo encomendaram folhetos sobre o Círio e a cidade de Belém, com textos em português e inglês, visando conferir “uma nova dimensão ao turismo” do Pará, como divulgou o A Província do Pará na época.
No mesmo jornal, em 1974, uma matéria anônima informava que “foi montado um eficiente esquema publicitário em seu torno [Círio], capaz de garantir-lhe o sucesso e divulgação em todo o país e, consequentemente, atrair cruzeiros para a cidade”.
Círio Fluvial se estende até os dias de hoje no rio Guamá, em Belém. A imagem acima retrata o realizado em 2017. — Foto: Fabiano Vilella / TV Liberal
Outro fato que evidencia a relação entre Círio e turismo, de acordo com o pesquisador, foi a criação da romaria fluvial, em 1986, por iniciativa da Companhia de Turismo do Estado do Pará (Paratur). Estando, portanto, diretamente ligada aos interesses da indústria cultural e do turismo.
"Não à toa, o presidente da Paratur, àquela época Carlos Rocque, comemorou, poucos anos antes, a exibição do Círio como tema de escola de samba no Rio de Janeiro. Em uma matéria publicada no jornal O Liberal, em 1989, Carlos dizia ser o 'Círio, a maior procissão do Brasil como destino turístico.”
Ainda segundo o antropólogo, a festa católica atrai atualmente em torno de 80 mil turistas de fora do estado e injeta na economia local, por ano, um valor em torno de R$ 100 milhões.
Promesseiro faz trajeto do Círio 2020 de joelhos, mesmo sem procissão oficial por conta da pandemia. — Foto: Caio Maia
Ao longo dos centenários da maior procissão católica do mundo, o Círio, em sua essência, é tempo de agradecimento, de renovação da fé, de confraternização. Pela população paraense, os turistas serão sempre bem-vindos e muito bem acolhidos pelos irmãos, devotos da santinha.
"O desafio daqueles que organizam o Círio é manter o equilíbrio entre a divulgação da Festa de Nazaré no mercado de turismo religioso e as formas tradicionais de pagamento de promessas dos devotos paraenses", destacou Márcio.
Como exemplo, o historiador pontua que o excesso de arquibancadas pagas na avenida Presidente Vargas diminui o espaço das vias públicas aos devotos que costumam se reunir na área para ver a passagem da santa.
"Muito embora pressionado pela busca excessiva de turistas, o Círio segue como uma procissão popular, popularíssima. São os devotos de Nossa Senhora, com seu modo peculiar de acompanhar a procissão e de pagar as promessas alcançadas, que dão ao Círio de Nazaré a sua identidade" completou.
*G1