Domingo, 21 de dezembro de 2025
Domingo, 21 de dezembro de 2025
Ao Correio, o chanceler brasileiro destacou o pulso firme do país contra os ataques golpistas e a repercussão mundial. Ele também ressaltou as tratativas do governo com a gestão de Donald Trump com impacto para o mercado
O ano de 2025 foi um dos anos mais desafiadores para a diplomacia brasileira. Contexto geopolítico tenso, tarifaço do governo de Donald Trump, Brasil no G20, COP30 em Belém e, agora, mais recentemente, a nova doutrina de segurança dos Estados Unidos para a América Latina, com uma mobilização militar nas águas e nos céus do Caribe para derrubar o governo de Nicolás Maduro, na Venezuela, são os principais exemplos do trabalho que o Itamaraty teve para manter o protagonismo brasileiro no tabuleiro global.
Para o ministro das Relações Exteriores, apesar de todas as dificuldades, o saldo é positivo para o país. Em entrevista ao Correio, o chanceler destacou o esforço do país para conquistar novos mercados diante da pressão tarifária dos Estados Unidos sobre produtos brasileiros. Ele comemorou a revogação da Lei Magnitsky sobre autoridades brasileiras, como o ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes, e o sucesso da empreitada diplomática para mostrar a Washington que o governo brasileiro não tem ingerência sobre o Poder Judiciário, que é independente.
Vieira também falou sobre a presidência brasileira no G20 e a realização da 30ª Conferência do Clima das Nações Unidas (COP30), em Belém. "O Brasil voltou ao mundo, deixou para trás os equívocos da gestão anterior, que resultaram em um inédito isolamento do país, e essa volta tem representado ganhos para a população brasileira e respeito de todos nossos parceiros pela soberania que soubemos defender", disse o ministro.
No balanço de perdas e ganhos, como o senhor avalia o trabalho do Itamaraty neste ano intenso?
Foi um ano de muitos desafios, sem dúvida, e o balanço é muito positivo. Conseguimos combater a desinformação sobre a democracia brasileira e defender nossa soberania, e cumprimos à altura nosso papel à frente da organização e dos debates no Brics (bloco de países emergentes) e na COP30, mostrando que era viável a visão do presidente Lula de trazer o debate sobre mudança climática para a Amazônia brasileira. Belém recebeu com competência e hospitalidade as delegações de 195 países e os cerca de 45 mil participantes da conferência, a grande maioria dos quais teve seu primeiro contato com a realidade da Amazônia brasileira.
Qual foi o legado dessas participações?
Tanto na presidência do Brics quanto na COP, a liderança do Brasil deixou sua marca, com iniciativas concretas que terão seguimento, como a cooperação para a erradicação de doenças da pobreza, aprovada pelos sócios do Brics, e o Fundo Florestas Tropicais para Sempre (TFFF, na sigla em inglês), lançado na Cúpula do Clima, que antecedeu a COP, em Belém. Foi um ano muito intenso, no qual consolidamos nossa aproximação com a Associação dos Países do Sudeste Asiático (Asean), novo parceiro comercial e político de primeira grandeza, trabalho coroado com a participação do presidente Lula na Cúpula da associação, na Malásia. E, ainda, mantivemos uma agenda ativa de relações bilaterais e, agora, concluímos a presidência 'pro tempore' brasileira do Mercosul, marcada pela abertura ou retomada de diálogo para negociações de livre-comércio com diferentes parceiros no mundo. Países como Canadá, Reino Unido, Japão, Indonésia e outros buscaram o Mercosul com esse objetivo, e cabe lembrar que, no fim de 2024, concluímos a negociação de quase 25 anos entre o Mercosul e a União Europeia, atualmente em tramitação em Bruxelas (sede do bloco europeu) e, neste ano, assinamos o acordo de livre-comércio com a Associação Europeia de Livre-Comércio (Efta), que reúne Islândia, Liechtenstein, Noruega e Suíça.
Quais foram as negociações mais complexas, mais difíceis?
A de maior visibilidade na mídia e na opinião pública foi a relativa às tarifas e sanções contra autoridades brasileiras, adotadas em julho pelo governo norte-americano, sem dúvida. Mas houve muitas outras, inclusive, no ambiente multilateral, que é muito complexo, como vimos na COP de Belém. Mas negociações fazem parte do nosso cotidiano e somos treinados para elas, a complexidade dos desafios não nos impressiona e não nos faz perder o foco. E o foco é sempre o interesse nacional.
Como o senhor recebeu a notícia da revogação da Lei Magnitsky aplicada ao ministro Alexandre de Moraes e seus familiares?
Foi mais um gesto importante do governo dos Estados Unidos no sentido de normalizar as relações bilaterais e mais um resultado do trabalho intenso que tivemos por meio dos canais diplomáticos abertos a partir de julho, com forte apoio do presidente Lula e atuação pessoal dele na interação com o presidente (Donald) Trump, a partir de setembro, quando houve o primeiro encontro entre eles na sede da ONU, em Nova York. Ainda há pendências a resolver na área de tarifas para vários setores e na questão de vistos de autoridades brasileiras, e continuaremos a trabalhar com discrição e com foco em soluções, como a diplomacia brasileira tem feito desde julho. Mas a notícia da revogação da Lei Magnistsky atende a uma das nossas principais reivindicações, e repara uma grande injustiça em relação a uma das autoridades que defendeu, com êxito, a democracia brasileira da tentativa de golpe de Estado, plenamente demonstrada nos autos do processo da trama golpista no STF.
No tarifaço de Trump, a maior dificuldade foi abrir portas na Casa Branca para mostrar que a questão política no Brasil não poderia ser negociada?
Não podemos nos esquecer que a medida foi tomada poucos meses depois da posse do governo do presidente Trump, então, era natural levar algum tempo para abrir canais de diálogo e esclarecer que o que estava em curso no Brasil era um julgamento conduzido pelo Judiciário, um Poder independente, com base em provas e depoimentos contundentes sobre a tentativa frustrada de golpe de Estado. A democracia brasileira mostrou ao mundo que era capaz de se defender e de responsabilizar quem atentou contra ela, e a mídia global reconheceu esse esforço. Lembro-me da reportagem de capa de setembro da revista britânica The Economist, sobre o golpe frustrado, que faz referência às lições que o Brasil pode dar ao mundo sobre defesa da democracia diante das ameaças do autoritarismo.
O senhor acredita que a relação com os EUA vai se normalizar?
Estamos trabalhando para isso, e os resultados são animadores. Temos 201 anos de uma relação bilateral sólida, e esse é um patrimônio tanto para o Brasil como para os Estados Unidos, não somente dos governos, mas, também, das sociedades como um todo. O presidente Lula sempre teve consciência da importância desse patrimônio, ele nos deu uma instrução clara desde o princípio, de que deveríamos buscar essa normalização, sempre que respeitada nossa soberania. Conseguimos avançar bastante no segundo semestre, mas ainda temos trabalho pela frente em relação às tarifas ainda vigentes para vários setores que são relevantes em termos econômicos e sociais. Contamos com canais de diálogo para resolver essas questões, e os presidentes Lula e Trump já orientaram suas equipes a buscar esse objetivo.
Ainda sobre os EUA, está em curso a maior operação militar nas águas do Atlântico desde a Guerra das Malvinas. E na beirada das águas territoriais brasileiras. Como o Itamaraty acompanha essa crise? O Brasil mantém a disposição de intermediar um diálogo entre Venezuela e EUA?
Não é exatamente 'na beirada', mas monitoramos todos esses movimentos e eles nos preocupam, porque, como já disse o presidente Lula ao presidente Trump, a América do Sul é uma região de paz e deve continuar assim. O Brasil sempre se dispõe a apoiar iniciativas de diálogo, mas isso sempre depende do desejo das partes, e não houve movimentos significativos nesse sentido até agora.
O senhor teme uma guerra na nossa fronteira? O Brasil pode oferecer asilo a Maduro, se ele sucumbir à pressão de Trump para deixar o poder?
Não cabe a um diplomata especular sobre cenários hipotéticos, menos ainda no caso de alguém na minha posição. O que posso dizer é que a preocupação brasileira quanto à manutenção da paz na região já foi transmitida, e será reiterada sempre que necessário, por meio dos canais diplomáticos e sempre com o objetivo de apoiar soluções negociadas e construtivas envolvendo as partes.
A asfixia econômica da Venezuela por causa das sanções dos EUA pode transbordar para o Brasil em forma de mais imigrantes na fronteira Norte?
Vamos continuar monitorando a situação tanto no Mar do Caribe quanto na nossa fronteira, mas não me cabe especular sobre cenários. Saberemos responder às circunstâncias que se apresentarem, tendo presente o forte impacto que esses movimentos trazem para Roraima e para a Região Norte.
Qual o saldo da presidência brasileira no G20?
A presidência brasileira do G20, em 2024, deixou um saldo extremamente positivo e teve como legado iniciativas tangíveis, como a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, que teve seguimento ao longo deste ano, no âmbito da FAO. As presidências brasileiras do G20 e do Brics tiveram essa preocupação, a de gerar iniciativas concretas e que tenham impacto na vida das pessoas que mais necessitam. É uma diretriz clara do presidente Lula, e que foi seguida também na Cúpula do Clima, com o lançamento do Fundo Florestas Tropicais para Sempre.
Com relação à COP30, o senhor viu os resultados pelo viés do copo meio cheio ou do copo meio vazio?
Para quem conhece as dificuldades atuais do multilateralismo, determinadas por uma circunstância histórica muito adversa, a COP30 teve o foco correto e, por esse motivo, logrou fazer avançar o debate em várias áreas prioritárias, sobretudo porque reforçou o papel central do Acordo de Paris. Os debates lograram consenso em torno da necessidade de, após décadas de negociação, avançar a partir de agora para uma nova fase, de aceleração na implementação das decisões e compromissos assumidos na capital francesa. Em Belém, as 195 delegações nacionais presentes reafirmaram esse compromisso e, também, compartilharam o entendimento de que é preciso partir para a implementação.
Qual o principal desafio da presidência da COP30 em 2026 até a COP31, na Turquia?
Cabe ao Brasil presidir os trabalhos até a COP31, na Turquia, e dar continuidade ao tratamento dos temas decididos em Belém, sobretudo no que se refere à implementação. Não foi possível alcançar no Pará um consenso na discussão sobre a transição em matéria de combustíveis fósseis, e a presidência brasileira lançou, por iniciativa própria, um roteiro para orientar a ação global nesse campo. Temos consciência das dificuldades e divisões nesse assunto, mas como a discussão sobre a mudança climática é um processo evolutivo contínuo, a presidência brasileira tem a responsabilidade de manter o foco prioritário nesse debate, para que possamos conseguir algum avanço ao longo do ano e, também, na Turquia. Outro roteiro proposto por iniciativa do Brasil para 2026 é o de iniciativas para interromper e reverter o desmatamento florestal, assunto no qual temos boas iniciativas para mostrar e para compartilhar.
Uma boa notícia deveria ter saído ainda neste ano, que é a assinatura do acordo de livre-comércio do Mercosul com a União Europeia, em negociação há quase 27 anos, mas não foi possível por resistência histórica da França que, nesta semana, teve como aliada a Itália. Quais são as principais vantagens do acordo para o Mercosul e quando poderemos ver efeitos concretos dessa união comercial?
A dimensão e as vantagens desse acordo comercial são históricas, e já foram ressaltadas quando do anúncio da conclusão das negociações. O Mercosul está coeso e pronto para a assinatura desde que as negociações foram concluídas, no ano passado. O que nos cabe agora é aguardar a decisão do Conselho Europeu sobre a aprovação do acordo, para, em caso de aprovação, tratarmos da assinatura e das muitas oportunidades que podem se abrir para os dois blocos a partir de uma futura entrada em vigor do texto negociado.
Com o adiamento da assinatura, o acordo Mercosul-UE está ameaçado?
Não posso falar pela União Europeia, isso cabe à Comissão e ao Conselho Europeu. Quando se manifestarem, todos saberemos. O presidente Lula já indicou que não ficaremos esperando indefinidamente por uma posição dos europeus, até porque temos uma série de outros interessados em negociar acordos de livre-comércio com o Mercosul, incluindo países importantes do Sudeste Asiático e três membros do G7, Canadá, Japão e Reino Unido. Não há tempo a perder, e seguiremos negociando novas parcerias com o mundo.
Ainda sobre o Mercosul — cujos países estão divididos entre governos de esquerda e de direita —, como o senhor viu o desempenho do bloco neste ano e quais são os desafios para 2026?
Não é a primeira vez e não será a última em que isso acontece, é normal para um bloco que reúne países democráticos, nos quais existe alternância de poder. As divergências de posição, nesse contexto, são normais, mas o comércio intrabloco tem se recuperado nos últimos anos e temos avançado muito na atuação externa do Mercosul. Minha avaliação é a de que as negociações de livre-comércio com outros países e blocos, com acordos importantes fechados a partir de 2023 e dois já concluídos e assinados, com Singapura e o EFTA, têm reforçado a coesão do Mercosul e aberto novas possibilidades de inserção do bloco no cenário internacional. O interesse em negociar com o Mercosul por parte de parceiros importantes no mundo, três deles do G7 (Japão, Reino Unido e Canadá), mostra que estamos no caminho certo. Vamos continuar nele e procurar novas aberturas de mercados relevantes no mundo no próximo ano.
A crise do multilateralismo tem solução? O mundo avançou ou retrocedeu nessa questão em 2025?
A crise do multilateralismo político e econômico é profunda, e temos chamado a atenção para ela desde a posse do presidente Lula, em janeiro de 2023. Houve retrocessos desde então e, em 2025, não foi diferente, mas há solução para essa crise, e temos dialogado com parceiros sobre isso. O compromisso do Brasil com o multilateralismo é conhecido por todos, e não abrimos mão dele. A alternativa ao multilateralismo é a lei da selva, a lei do mais forte, e não podemos permitir esse retrocesso para a humanidade, já que todos conhecem a herança trágica da primeira metade do século XX, que inspirou a construção da arquitetura multilateral tal como a conhecemos. Esse patrimônio corre riscos e precisa ser defendido. Nossa atuação na ONU, na OMC (Organização Mundial do Comércio) e em agrupamentos como o G20 e o Brics tem a defesa do multilateralismo como prioridade.
Quais vão ser os maiores desafios da diplomacia mundial no ano que vem? De que forma o Brasil se posiciona diante deles?
O mundo anda muito imprevisível, então, temos que estar preparados para surpresas e fatos novos. Mas, independentemente dos cenários que se apresentem, os desafios estão aí, nos campos da paz e da segurança, do comércio, do direito internacional e da mudança climática, para citar alguns exemplos. Nesse ambiente de múltiplas frentes negociadoras, continuaremos a conduzir a política externa brasileira com a serenidade e a firmeza que marcaram nossa atuação ao longo de 2025, e na qual a ampla maioria da população brasileira deposita sua confiança. O respeito pelo Itamaraty, que observamos tanto no plano interno quanto no externo, é um ativo do Brasil, e temos a responsabilidade de zelar por ele. Nossa condição privilegiada como país, que é a de poder dialogar com todos os demais países, sem exceção, fortalece a defesa dos interesses do Brasil, e a atual gestão do presidente Lula demonstra isso claramente. O Brasil voltou ao mundo, deixou para trás os equívocos da gestão anterior, que resultaram em um inédito isolamento do país, e essa volta tem representado ganhos para a população brasileira e respeito de todos nossos parceiros pela soberania que soubemos defender.
*Correio Braziliense