Sábado, 23 de novembro de 2024
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O gasto anual para os cofres públicos brasileiros com custos gerados pelas bebidas alcoólicas atingiu a marca dos R$ 18,8 bilhões em 2019, de acordo com dados levantados pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) a pedido das organizações Vital Strategies Brasil e ACT Promoção da Saúde. O estudo aponta que o álcool é responsável por 12 mortes por hora no Brasil.
Os custos diretos relacionados às bebidas alcoólicas — hospitalização e procedimentos ambulatoriais — são responsáveis por consumir R$ 1,1 bilhão do Sistema Único de Saúde (SUS) em 2019. Já os gastos indiretos relativos à ingestão excessiva de álcool chegam a R$ 17,7 bilhões e envolvem desde gastos com Previdência Social — licenças médicas e aposentadorias precoces — até perda de produtividade, como presenteísmo (quando o funcionário está no ambiente de trabalho, mas não tem 100% de dedicação), absenteísmo (medida dos recursos humanos para a quantidade de ausências no trabalho) e mortes prematuras.
Ainda nos gastos indiretos gerados pelas bebidas alcoólicas, é estimado que o custo previdenciário relacionado chegou aos R$ 47,2 milhões em 2019. O público masculino é responsável por 78% desse total, equivalente a R$ 37 milhões. Mulheres representam o montante de R$ 10,2 milhões.
Pedro de Paula, diretor da Vital Strategies Brasil — uma das organizações que solicitou a pesquisa —, explica que o objetivo do estudo é conscientizar as pessoas a respeito dos malefícios gerados pelo álcool e, consequentemente, cobrar dos representantes políticos uma movimentação que gire em torno do desenvolvimento de políticas públicas de combate ao abuso do álcool. “92% da população brasileira apoia que o governo tome medidas para reduzir os efeitos danosos do álcool. 62% apoiam mais tributo para aumentar o preço do álcool. Então, é muita coisa num país tão dividido politicamente”, comentou.
A reforma tributária também é enxergada com bons olhos pelo diretor da organização, que acredita que a tributação “é a medida mais eficaz no curto prazo para reduzir o consumo de forma adequada”.
Pedro compara, ainda, a situação das indústrias de bebidas alcoólicas, atualmente, com o que foi a briga econômica e publicitária envolvendo a indústria do tabaco nos anos 1990. “A gente tem uma oportunidade geracional, assim como a gente teve com o tabaco há 20 e poucos anos, de mudar as condições regulatórias que incentivam o consumo de uma substância que gera muitos problemas, muitos custos, muito sofrimento”, afirmou o executivo.
Mortes
O estudo da Fiocruz, intitulado “Estimação dos Custos Diretos e Indiretos atribuíveis ao Consumo do Álcool no Brasil”, também mostra que, em 2019, as bebidas alcoólicas foram responsáveis por ceifar cerca de 105 mil vidas no Brasil. O levantamento foi baseado em dados de óbitos relacionados às doenças cardiovasculares.
Pesquisas internacionais estimam que de 1% a 3% do PIB (produto interno bruto) dos países é gasto por conta dessa droga. Segundo o levantamento, no Brasil, a perda fica na casa de 0,25%. “É gigantesco, de qualquer forma”, lamentou o executivo da Vital Strategies.
Eduardo Nilson, pesquisador da Fiocruz e autor do estudo, afirma que os maiores custos e as maiores causas de mortalidade são doenças cardiovasculares e cânceres. “Não existe um nível seguro de consumo de álcool no Brasil. Então, qualquer nível de consumo representa risco e existe uma relação dose-resposta que está incorporada no nosso modelo. Inclusive, mostra justamente que quanto mais se consome, mais se aumenta o risco para todas as doenças. [...] Nós estamos num ponto em que o álcool ocupa o lugar que o tabaco esteve no passado”, relatou.
Políticas públicas
De Paula reforça, ainda, que a principal recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) para controlar o consumo de álcool é a tributação. Segundo ele, além de reduzir despesas, ela reduz a sobrecarga do sistema de saúde. “Não é só a despesa que está onerando o sistema de saúde, é a incapacidade dele dar conta de toda demanda para cuidar da presença de doenças crônicas e também das infecciosas.”
“Com isso [a tributação], se a gente consegue prevenir, a gente está dando espaço para outras pessoas que não tiveram a chance de ter um câncer ‘prevenível’, por exemplo. Devidamente tratado com recursos públicos, a gente vai deixar de competir no sistema público pela vaga daquela pessoa. Isso é fundamental. É o que o governo deve fazer”, completou.
O deputado federal Jorge Solla (PT), relator do projeto de lei nº 1812/2019 — que instituiu o Dia Nacional de Prevenção Contra o Uso e o Abuso do Consumo de Bebida Alcoólica (10/06), — concorda com De Paula e Nilson. Na sua opinião, é preciso discutir uma regulamentação das propagandas, limitar o acesso em pontos sensíveis e apoiar programas de reabilitação, ampliando o acesso desses serviços de saúde à população mais vulnerável.
“Um modelo sustentável seria reverter parte dos impostos sobre bebidas alcoólicas para financiar campanhas de conscientização e expandir o acesso a serviços de apoio e tratamento. Dessa forma, garantiríamos que a tributação também gere benefícios concretos para a sociedade, qualificando o atendimento primário e também de média e alta complexidade de doenças relacionadas ao consumo de álcool”, explicou o deputado.
Questionado pelo Correio sobre a possibilidade de a indústria de bebidas alcoólicas aderir pacificamente às políticas públicas de redução de consumo do álcool, o diretor da Vital Strategies explica que o setor aprendeu “muito bem com o tabaco”. “Tem se antecipado às medidas mais duras e se portado de uma forma menos explicitamente complexa, ou ruim. Tenebrosa, na verdade. Como foi [a indústria] do tabaco”, comentou.
Nilson, por sua vez, aponta que o conflito de interesses existente entre indústrias e as políticas públicas a serem desenvolvidas impossibilita que algo positivo seja feito. “Muitas vezes são propostas medidas voluntárias, por exemplo, muito inefetivas, pouco aplicáveis e não acabam nem mitigando o problema. Na verdade, protelam decisões que poderiam, de fato, ser tomadas de forma regulatória”, explicou.
O estudo da Fiocruz mostra também que a principal faixa etária atingida são as pessoas em idade produtiva, dos 40 aos 60 anos. Este grupo possui a maior incidência nos atendimentos ambulatoriais, com 55% dos custos referentes às mulheres e 47,1%, aos homens. O deputado Jorge Solla acredita que uma das saídas eficazes é a criação de uma legislação própria voltada para a educação e prevenção do consumo abusivo do álcool.
Além disso, Solla defende a criação de um programa nacional que promova a educação sobre bebidas alcoólicas desde a juventude, com campanhas de conscientização contínuas, apoio a dependentes e treinamento de profissionais de saúde. Segundo ele, assim, o problema seria abordado de forma ampla, desde a prevenção até o tratamento e reintegração dos afetados.
Efeitos psicossociais
O levantamento da Fiocruz indica ainda uma relação direta entre o consumo abusivo de álcool e casos de violência — especialmente doméstica —, crimes e ocorrências de trânsito. De Paula reforça que políticas públicas voltadas para o combate do consumo abusivo do álcool têm “a possibilidade de ser uma política, além de tudo, que reduz as desigualdades estruturantes da nossa sociedade”.
Nilson reforça que, apesar do componente social relacionado aos acidentes de trânsito, autoviolência e violência interpessoal, também é preciso olhar os custos do Sistema Único de Saúde. “Quando a gente olha a questão dos custos ao SUS, da população que depende do SUS, a gente já tem uma carga muito grande, que já tem um olhar, do ponto de vista social, também em função da renda.”
“Nós estamos trabalhando somente com a Previdência Oficial, então não sabemos o impacto quantificado, por exemplo, em trabalhadores informais, onde existe uma questão econômica e social ainda mais forte. [...] Então, traz uma carga social muito grande, além, é claro, do que a gente está trabalhando em termos de adoecimento e mortalidade prematura, que afeta famílias, afeta a vida de todos, e além de tudo, afeta a própria economia”, explicou.
O psicanalista Artur Costa, professor sênior da Associação Brasileira de Psicanálise Clínica (ABPC), diz que, muitas vezes, o consumo de álcool representa uma busca pela gratificação imediata, “uma forma de anestesiar o sofrimento psíquico e preencher um vazio interno”. “Com o tempo, o reforço negativo passa a predominar: a pessoa bebe para evitar o sofrimento, o desconforto e a angústia que surgem na ausência do álcool, criando um ciclo de dependência. Essa dinâmica é um reflexo do conflito entre o princípio do prazer e a realidade psíquica do indivíduo”, explicou.
O consumo crônico do álcool provoca alterações profundas na estrutura da personalidade do indivíduo que abusa da substância. Assim, ele se torna mais impulsivo, ansioso e emocionalmente instável, segundo Costa.
O especialista defende, também, a criação de programas de conscientização emocional nas escolas e campanhas educativas que abordem o impacto do álcool na psique, afirmando que podem ser ferramentas importantes para ajudar os jovens a evitar o uso como forma de lidar com dificuldades emocionais.
“Os fatores de risco psicológicos para o alcoolismo incluem sentimentos de baixa autoestima, traumas na infância, dificuldades em lidar com emoções negativas e padrões familiares de abuso de substâncias. Jovens podem estar especialmente vulneráveis, pois estão em um período de formação de identidade e de enfrentamento das pressões sociais”, completou o professor da ABPC.
*Correio Braziliense