Quinta-Feira, 13 de março de 2025
Quinta-Feira, 13 de março de 2025
“Fies Social? De ‘social’, ele não tem nada”, diz Eduarda Cardoso, de 22 anos, estudante de medicina e beneficiária do programa, criado em 2024 pelo Ministério da Educação (MEC). “Nossa renda é de R$ 700 por pessoa aqui em casa, mas preciso pagar R$ 2.300 por mês na faculdade, mesmo com Fies. É inviável.”
O problema, segundo Eduarda e outros jovens ouvidos pelo g1, é que existe um “teto” muito baixo no financiamento, considerando os preços atuais das faculdades. No caso de medicina, o patamar máximo “emprestado” pelo programa é de R$ 10 mil por mês — sendo que boa parte das instituições cobra mais de R$ 12 mil. Tudo o que extrapola o limite deve ser pago pelo aluno mensalmente, na chamada “coparticipação”.
Um exemplo real: Ana Silva, de 24 anos, é uma das que 2,3 mil pessoas que se matricularam em medicina pelo Fies Social. Ela foi aprovada no segundo semestre de 2024, em uma instituição de ensino de Salvador.
“Se eu soubesse que [o valor] aumentaria tão absurdamente, nem teria assinado o contrato. Não tem condição de eu continuar estudando neste ano. Já solicitei o trancamento da vaga e a suspensão do contrato do Fies”, conta.
“Como podem chamar esse programa de ‘social’, se é para pessoas que, em situação de vulnerabilidade, vão assumir uma dívida e ainda pagar um valor alto todo mês?”
O que diz o governo? Procurado pelo g1, o Ministério da Educação optou por não se pronunciar. Já o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), que é ligado ao MEC, declarou que o teto é necessário para garantir a sustentabilidade do programa, “evitando o superendividamento dos estudantes”.
Disse também que o Comitê Gestor do Fies (CG-Fies) está analisando “uma possível revisão” desse limite de R$ 10 mil, com o objetivo de “alinhar o financiamento às necessidades dos estudantes”. “A expectativa é avaliar a proposta ainda no primeiro bimestre”, disse o órgão.
Abaixo, nesta reportagem, leia mais sobre:
Lorena chegou até a entrar no grupo de Whatsapp da turma, mas desistiu do curso após descobrir que o financiamento não seria de 100% — Foto: Arquivo pessoal
Se a pessoa precisar mudar de cidade para fazer a graduação, por exemplo, ela terá de arcar não só com a coparticipação alta em medicina, como também com todos os custos de alimentação, transporte e habitação.
✈️Essa conta “que não fecha” foi determinante para que Lorena Alves, de 21 anos, desistisse de assinar o contrato do Fies Social. Ela mora em Petrolina (PE) e havia sido aprovada em uma instituição de ensino em Lauro de Freitas (BA).
“Sou de baixa renda. A coparticipação de medicina já ficaria impossível, ainda mais pagando estadia. Meu sonho viraria um pesadelo”, diz.
“Estou abalada, porque já tinha até entrado no grupo de Whatsapp da turma. Mas não tem jeito: fui pesquisar e descobri que o Fies Social não é social. Não é para mim. Minha avó pode morrer, minha mãe pode morrer, não sei o dia de amanhã. Se eu precisasse largar o curso no meio, não teria quem me ajudasse a pagar uma dívida de meio milhão de reais.”
Letícia venderá salgados e doces para pagar a coparticipação em medicina — Foto: Arquivo pessoal
Letícia Brandão, de 28 anos, é mãe solo em Itabuna (BA) e beneficiária do Bolsa Família. Há 10 anos, ela tenta ser aprovada em medicina pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).
“Diante da qualidade do ensino público no Nordeste, nunca consegui passar. Surgiu, então, em 2024, essa oportunidade do Fies Social. Pensei: se é social, é 100% [de financiamento]. Vou realizar meu sonho! Parecia uma oportunidade incrível. Mas aí descobri que precisava pagar R$ 390 todo mês. Agora, a mensalidade subiu, e serão R$ 980 de coparticipação”, conta.
Ela não quer interromper os estudos. “Minha ideia é vender doce e salgado para conseguir esse valor. É constrangedor desistir, é humilhante. Estou tentando me virar.”
Laboratório em faculdade de medicina — Foto: Divulgação
Na modalidade mais ampla do Fies, são aceitos estudantes com renda familiar per capita de até 3 salários mínimos (R$ 4.554). Embora sejam pessoas com situação financeira menos desconfortável que a dos beneficiários do Fies Social, há um agravante: desde 2016, o financiamento para esse grupo nunca mais chegou a 100%, nem mesmo quando a mensalidade fica abaixo do teto.
Se o curso custar R$ 9.900, um estudante que tenha direito a 90% de financiamento (R$ 8.910) terá de pagar uma coparticipação de R$ 990 por mês.
Priscila Tavares, por exemplo, abandonou o curso de medicina em 2022, no Ceará, um ano após ser aprovada no Fies “normal”.
“Minha coparticipação já estava em R$ 4.500. Como precisei desistir, estou sem diploma e com uma dívida de R$ 200 mil [do ano que cursei]”, conta.
“Tenho uma filha com deficiência, não posso trabalhar. Vivo com o benefício de prestação continuada (BPC), enquanto tento passar em uma universidade pública. Preciso terminar o curso para melhorar a vida da minha família.”
Eduarda pede que o 'teto' do financiamento para medicina seja maior — Foto: Arquivo pessoal
Camila Furlan da Costa, professora do curso de administração pública e social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que o MEC, em 21 de março de 2024, emitiu uma portaria que modificou uma das regras do Fies: as instituições de ensino passaram a ter segurança jurídica para conceder um desconto na mensalidade dos beneficiários do programa.
As faculdades, portanto, podem diminuir o valor cobrado desses alunos, sem a obrigação de estender as mesmas condições aos que não fazem parte do Fies.
“Só que a resolução fala em ‘poderá’ [dar o desconto]. Não obriga a instituição a fazer isso”, reforça a docente.
Eduarda, mencionada no início da reportagem, diz que tentou usar essa portaria para negociar uma mensalidade mais atrativa. “Recebi um ‘não’ escancarado. Essa decisão do MEC fez só uma cócega, porque a maioria das faculdades não vai querer aderir”, diz.
Ao g1, Bruno Coimbra, diretor jurídico da Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (Abmes), disse que a solução para o programa ser, de fato, “social”, não pode vir das instituições de ensino.
“A proposta deve ser a de rever o teto [do MEC]. Não faz sentido que as faculdades criem mecanismos próprios e fora da política pública para resolver a questão. Não dá para cada instituição fazer um ‘puxadinho’: as maiores até podem conseguir [dar descontos], mas e as menores? Criaríamos uma distorção. A solução precisa ser a mesma para todos”, afirma.
Os entrevistados apontam opções (que dependem da viabilidade econômica, obviamente):
No modelo político-econômico do Brasil, não haveria a possibilidade de o governo interferir nos valores das mensalidades das instituições privadas – a única exigência é que os aumentos sejam devidamente justificados ao FNDE.
Outra opção, afirma Camila Furlan da Costa, seria mudar o foco: em vez de despender mais recursos com financiamento, o governo aumentaria o número de vagas em universidades gratuitas.
“O Fies é um programa importante para o acesso de pessoas de baixa renda ao ensino superior, mas gera um endividamento delas”, afirma. “Eu defenderia um maior investimento nas instituições públicas.”
O próprio alcance do Fies vem caindo: em 2014, no primeiro semestre, foram 480 mil novos contratos. Na atual edição, são 112 mil. “O número de financiamentos é muito baixo. Salva individualmente algumas almas, mas não resolve o problema do Brasil”, diz Elizabeth Guedes, vice-presidente da Associação Nacional das Universidades Particulares (Anup).
O FNDE garante que o programa está “em constante aprimoramento, buscando ser sustentável e equilibrado.”
*G1