Quarta-Feira, 27 de novembro de 2024
Quarta-Feira, 27 de novembro de 2024
Do politizado Jonas do filme “O que é isso, companheiro?” (1997) ao fofoqueiro Norberto da novela “Renascer” (2024), atual folhetim das 21h da Globo, Matheus Nachtergaele, de 56 anos, é detentor de um currículo invejável. Nele estão alguns trabalhos seminais no audiovisual brasileiro, obras como “Central do Brasil” (1998), “Cidade de Deus” (2002) e, é claro, “O auto da compadecida” (2000), em que interpreta o inesquecível João Grilo, personagem de Ariano Suassuna que ele reencontra na continuação que estreia em dezembro. E, na próxima quinta-feira (8), o ator retorna à tela grande com seu mais novo projeto, o roadmovie cearense “Mais pesado é o céu”, de Petrus Cariry.
No longa, Matheus vive Antônio, um homem simples que retorna para a terra onde foi feliz um dia, mas que já não existe mais, tendo sido tomada pelas águas de uma represa. Na estrada, ele conhece Teresa (Ana Luiza Rios), uma mulher que acolhe um bebê e que também busca por novos caminhos.
Empolgado e emocionado com o atual momento na carreira, Matheus recebeu o GLOBO em sua casa no bairro do Jardim Botânico, na Zona Sul do Rio — residência que divide com seis cães, um peixe e muitas plantas e livros.
Enquanto aguardava ansiosamente pelo e-mail com suas cenas para uma gravação da novela no dia seguinte, o ator falou sobre os atuais projetos, a dedicação ao ofício, a decisão de não ter filhos, a homenagem que irá receber no Festival de Gramado (ele sobe ao palco do Palácio dos Festivais no sábado, dia 10, para receber o Troféu Oscarito pelo conjunto de sua obra), o reencontro com a obra de Ariano Suassuna e mais.
A seguir, os principais pontos da conversa.
“Como não sou místico ou religioso, gostaria de agradecer aos bons ventos e à trança do destino por este momento que estou vivendo, em que lanço 'Mais pesado é o céu', em que reencontro Guel (Arraes), Selton (Mello) e Flavinha (Lacerda) para fazer Ariano (em 'Auto da Compadecida 2') e em que concluo 'Renascer', que tem sido uma experiência surpreendentemente artística para mim.”
“Já observava o trabalho do Petrus como sendo o de um grande diretor brasileiro, que traz o melhor do que nosso cinema pode ser dentro do que ele tem de criatividade, inventividade e poesia. Fomos para uma estrada no sertão do Quixadá para fazer um filme extremamente poético, sobre um homem e uma mulher numa terra devastada pela falta de grana, pela pandemia, pela falta de horizonte, num país com as estradas vazias que está voltando a procurar caminhos. Eles são obrigados, por encontrarem um bebê, a decidir o caminho que irão seguir.”
“O filme (‘Mais pesado que o céu’) não atende a demanda narrativa dos tempos atuais, em que você precisa prender o espectador sem parar para que ele lote salas ou não mude de canal. É livre disso, é o filme de um artista. Com tudo o que está acontecendo no mundo, a tela grande do cinema sofrerá muitas modificações. Essa grande experiência coletiva que é o cinema irá merecer uma ida por dois motivos. Primeiro, pelo espetáculo de entretenimento, como as animações, os filmes com novas tecnologias e efeitos especiais. Depois, pelos filmes em que o importante não é o entretenimento ou a satisfação dos seus desejos, mas que te dão espaço para pensar verdadeiramente no mundo através de imagens e som, que te dão espaço para ser, crescer e pensar ao longo de sua projeção.”
“Adoro ter tido uma vida boêmia, mas não estava me fazendo bem. É preciso envelhecer com saúde. Para manter a constância do trabalho e estar saudável, fiz algumas opções. Estou há dez anos sem beber, estou mais diurno, malho, passei a cuidar mais da saúde, apesar de ainda fumar. Acho que quase tudo que faço é para que eu possa continuar sendo ator, inclusive a abstemia. É para continuar sendo saudável e poder fazer meu trabalho. Realmente já não vou mais em festas e baladas."
“Hoje em dia, eu só saio de casa à noite para trabalhar, para encontrar alguém que eu ame muito ou para dançar. Eu sou um ser que dança. Se me chamar para uma festa com todo mundo batendo papo e bebendo, eu não irei, mas se disser, ‘a banda ou o DJ é maravilhoso’, eu irei e serei o rato de salão mais resistente que você verá.”
“Considero o bebê o grande protagonista (de ‘Mais pesado que o céu’). Pertencem a ele todas as demandas. Não sou pai, moro longe da minha família, sou um capricorniano trabalhador, ex-boêmio, um homem, de uma certa maneira, antifamília. Apesar de ser terno e amar minha família, não sou do tipo familiar. Contracenar com um bebê todo tempo foi um desafio. Nada é mais forte que a presença de um bebê. Dizem para não contracenar com bebês e animais, porque eles roubam a cena. Que roubem! Se a cena for roubada por um bebê, quer coisa mais bonita? Eu passaria horas vendo os movimentos de um bebê no berço.”
“Não ser pai foi uma decisão que meu modo de vida traçou junto comigo. Nunca acalentei desejos fortes de paternidade, sempre considerei minhas obras como minhas crias. Sou um homem do trabalho, da festa e da prece. Não a prece religiosa, mas a da poesia. Não me sinto impulsionado a paternidade concreta, biológica. Com a idade avançando, você começa a ter instintos paternais mais fortes, mas principalmente com os mais jovens, de cuidar, aconselhar, avisar e admirar a força da juventude. Não deixa de ter um toque de paternidade. Tenho vivido uns momentos bonitos em 'Renascer', neste sentido, com jovens atores que estão começando, como o Xamã, que me telefonam para conversar sobre suas cenas.”
“Gosto mais de bicho e flor. Tenho desconfiança com o ser humano desde sempre. Eu amo ser humano, amo o ser humano, mas também me decepciono tantas vezes com quem eu sou e com quem nós somos. E na natureza eu encontro a minha oração e os sinais da divindade. Não sou um papai de cachorros que os considera como crianças. Eles são cachorros e os amo assim. Eu passo horas quieto com eles, em silêncio. Na pandemia cheguei a ter 18. Estávamos todos reunidos em Minas (o ator tem uma casa em Tiradentes, onde passou parte do confinamento da Covid-19).”
“Eu prefiro trabalhar do que não trabalhar. Eu acho férias um pouco chato. Eu tiro porque preciso. Não sei muito como ficar em férias. Geralmente, já estou com algum projeto na cabeça, porque é no que eu penso.”
“No geral, vou sempre para os mesmos lugares. Neste estágio da vida, não quero me cansar nas férias. Quero descansar de verdade. Eu prefiro visitar caminhos que já andei e rever lugares que me acalmam do que entrar em uma gincana turística. Provavelmente, estarei em Tiradentes, na Praia dos Carneiros ou em Olinda (ambos em Pernambuco). E, em geral, com os cachorros. Boto no avião. Cães incomodam, então eu acordo 5h da manhã e saio na primeira luz do dia para andar com a matilha na praia.”
“Fazer novela no Brasil é exercer a grande plenitude de um ator nos tempos modernos, é um trabalho coletivo, diário. A sua vida no país fica muito alterada. As pessoas convivem comigo através do Norberto de ‘Renascer’. Fiz muitos filmes do Cláudio Assis com o Walter Carvalho (diretor da novela) e sempre havia esse procedimento de quebrar a quarta parede em cenas escolhidas. Em todos os filmes, em algum momento, eu encarava a câmera para dizer algo importante. No segundo dia de filmagens, deu vontade de fazer isso e falei com Waltinho. Ele saiu fora do set para submeter ao Gustavo Fernández (diretor artístico) essa proposta. Ele falou, ‘o Matheus está com vontade de olhar para a câmera’. Ele voltou cinco minutos depois com a notícia: ‘faz sempre que sentir vontade e vamos conversando’. Poucos dias depois virou uma marca para o personagem e para a novela. Rapidamente, o Bruno Luperi (autor) passou a me mandar textos já com os momentos em que ele gostaria que eu fizesse isso."
“As redes sociais são uma forma de divulgar fortemente o meu trabalho, funciona bem para mim. Mas não gostaria de viver a maior parte do tempo neste mundo eletrônico. Eu fui todo formado antes das redes, eu nasci no artesanato. Sou um homem que tinha que levantar e girar um botão para mudar o canal. Da minha vida pessoal, as pessoas sabem o que é preciso saber do ponto de vista de uma pessoa que é um ator. Elas sabem das coisas que eu sinto do mundo. Eu conto sobre a morte da minha mãe, sobre o que eu imagino que seja a conquista de uma liberdade amorosa e sexual, sobre o que eu imagino que seja mais bonito para nós como destino político como nação, mas do meu cotidiano mais íntimo, eu não vejo a necessidade das pessoas saberem que eu sinto dores de articulação ou se estou namorando, ou de que sexo essa pessoa é."
“O ‘Auto da compadecida 2’ vai ser um presente de natal para o público e para mim (o filme estreia no dia 25 de dezembro). Um filme tão aguardado, que conta com uma amizade de 25 anos com público brasileiro, pode ser um programa maravilhoso pós-ceia. Eu vou fazer isso. Vou comemorar o dia 24 com minha família e no dia seguinte eu vou para o primeiro cinema mais próximo para ver o filme com o público. Vamos passar o natal juntos. O 'Auto' é um dos degraus da brasilidade e aquele raro encontro entre o que é mais popular e o que é mais poético.”
“Me falta a beleza dos galãs, então eu ganho por outro lado. Posso acessar a tipicidade do tipo mais comum do Brasil. Eu sou o paulistano mais simples, mas também sou o cabeça chata do Ceará, o tiozinho da venda, o mineirinho da roça. O meu tipo físico permite isso. E eu tenho esse menino dentro de mim que acho tem na alegria brasileira, nos cordelista, nos sanfoneiros. Fui muito recrutado para os sertões e subúrbios.”
“Durante a novela é difícil assistir a qualquer coisa. Não tenho acompanhado as Olimpíadas porque gravamos sempre muito cedo. Mas, antes, estava um pouquinho viciado em streaming. Vejo de tudo sem preconceito, adoro séries de investigação nórdicas, vejo ‘The Crown’ para ver aqueles atores maravilhosos. Como só assinei streaming na pandemia, eu tenho um paraíso pela minha frente. Estou com um leque de coisas que todo mundo já viu. Outro dia, estava assistindo a ‘Breaking bad’ e não conseguia largar. Uma que vi há pouco tempo e que me deixou louco foi ‘El marginal’. Vi todas as temporadas.”
"Essa homenagem em Gramado vai ser um ponto de culminância bonito e carinhoso da minha carreira. Todas as minhas escolhas foram feitas para que eu seja um ator e continue atuando. Não quero nada que me prenda, a não ser o vínculo com a expressão e a comunicação com as pessoas. São muitos filmes, nem sei quantos. Desde que comecei, eu faço no mínimo dois filmes por ano. Eu moro no cinema do Brasil."