Aguarde. Carregando informações.
MENU

Quarta-Feira, 27 de novembro de 2024

Esportes

O Figueirense não está só: como o Pix da torcida impediu que clube da Série C fechasse as portas

O Figueirense não está só: como o Pix da torcida impediu que clube da Série C fechasse as portas

(Imagem: Diego Ribeiro)

A maior comemoração do Figueirense em seu aniversário de 102 anos foi, simplesmente, o fato de estar vivo. Na última segunda-feira, 12 de junho, um dia que deveria ser de festa teve o Estádio Orlando Scarpelli vazio, derrota para o Pouso Alegre por 2 a 1, de virada, queda na tabela da Série C do Brasileirão e demissão do técnico Roberto Fonseca.

Ainda assim, os pouco mais de 2.600 torcedores que encararam uma noite gelada e chuvosa em Florianópolis encontraram forças para cantar parabéns ao clube por mais um ano de vida. Até pouco tempo atrás, afinal, o Figueirense corria o risco de nem ter um time para celebrar seu aniversário em campo.

– A perspectiva era de o clube fechar, a verdade é essa – afirmou José Carlos Lages, diretor-executivo do Figueirense, sobre a situação na chegada da atual gestão.

O Figueirense luta pelo acesso à Série B dentro de campo e pela própria sobrevivência fora dele. Com um processo de recuperação extrajudicial parado desde o fim de 2022, após decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o clube faz o que pode para honrar os compromissos e vê sua torcida reagir no momento mais difícil: uma campanha para doações via Pix já beira os R$ 300 mil em arrecadação e ajuda a manter o futebol em atividade na Série C.

– Quando a torcida abraçou o clube, você precisava ver o clima antes e depois do projeto. Mudou o clima, e os funcionários chegaram à conclusão de que não estavam sozinhos. (...) Se não ajudar agora, daqui a pouco pode não ter mais o Figueirense – alertou Arthur Geske, idealizador da campanha "Juntos pelo Figueira".

Torcida do Figueirense no Estádio Orlando Scarpelli: noite gelada e chuvosa de aniversário em Floripa, mas ao menos com o time em campo — Foto: Diego Ribeiro

Torcida do Figueirense no Estádio Orlando Scarpelli: noite gelada e chuvosa de aniversário em Floripa, mas ao menos com o time em campo — Foto: Diego Ribeiro

Pix "coloca" time em campo

A campanha "Juntos pelo Figueira" começou em março e partiu de Arthur Geske quando o clube, quebrado, buscava recursos para conseguir jogar a Série C após a eliminação nas quartas de final do Campeonato Catarinense. A ideia do Pix foi levada à diretoria via assessoria de imprensa e rapidamente aceita. Arthur se juntou a Geovani Machado, presidente da ATOF (Associação das Torcidas Organizadas do Figueirense) e levantou o trabalho conjunto.

A arrecadação, até esta semana, bateu os R$ 290 mil – valor que bancou um mês de folha salarial do elenco e alguns outros ajustes do futebol do clube. As doações, em média, ficaram na casa dos R$ 50, mas variaram de R$ 1 a R$ 10 mil entre torcedores do Figueira, e até centavos transferidos como gozação de rivais, principalmente do Avaí.

– Tenho certeza de que daqui a pouco outras torcidas estão fazendo também. (...) Falei em um grupo de torcedores assim: "Vocês estão preocupados com gozação agora, ou vão botar a mão na massa e ajudar?". Chegou o momento de virar a chave – destacou Arthur.

– A cara foi dada para bater – emendou Geovani Machado, da ATOF.

Arthur Geske e Geovani Machado, idealizadores da campanha do Pix do Figueirense — Foto: Ronaldo Fontana

Arthur Geske e Geovani Machado, idealizadores da campanha do Pix do Figueirense — Foto: Ronaldo Fontana

A campanha continua e não tem meta de arrecadação definida, mas serviu de exemplo para o clube: era preciso escancarar o problema, encará-lo e resolvê-lo com o máximo de transparência.

– O Pix era uma ajuda mais momentânea, porque o clube está fazendo diversos projetos para ajudar a sanear as contas, e o que vai mesmo dar o suporte é o torcedor vir e ser sócio. O Pix era uma coisa para deixar o Figueirense de pé nos próximos dois ou três meses – resumiu Arthur.

Além do Pix, o Figueirense contou com apoio de empresários e recebimento de cotas da CBF para poder caminhar – já foram duas parcelas de R$ 300 mil, e mais uma deve cair em meados de agosto. Valores que englobam viagens, hospedagens e o funcionamento do time na Série C.

– O Pix ajudou bastante, no nosso fluxo de caixa é quase uma folha salarial, então nos ajudou bastante, gostaríamos de falar para a torcida não se esquecer de fazer mais vezes – avisou José Carlos Lages.

– Conhece a expressão? Estamos fazendo do limão, a limonada. A cada momento temos tido auxílio, alternativas, de coisas paliativas para a gente ganhar tempo e ter ali na frente uma definição concreta, uma solução definitiva do problema do Figueirense, que passa necessariamente por um investidor que venha se juntar a nós – completou.

Afinal, o rombo é muito maior do que os R$ 290 mil doados pela torcida.

Dívidas, penhoras e a "ponta do iceberg"

José Carlos Lages faz parte de uma diretoria que conhece bem o clube e esteve lá nos momentos mais gloriosos, em meados da década de 2000: foram seis títulos catarinenses em nove anos, sete temporadas seguidas na Série A, de 2002 a 2008, e um vice-campeonato da Copa do Brasil em 2007, em final perdida para o Fluminense dentro do Orlando Scarpelli.

Ao lado de nomes como Norton Flores Boppré, ex-presidente e atual mandatário do Conselho Deliberativo, e Paulo Prisco Paraíso, presidente da SAF do Figueira, a "nova velha" gestão voltou em março de 2020 numa missão urgente.

As dívidas chegaram à casa dos R$ 185 milhões e praticamente paralisaram o clube. Penhoras e bloqueios de contas eram quase diários.

– Nós encontramos o clube dentro de um processo falimentar. Dívida gigantesca, processo de insolvência, quando você arrecada menos do que gasta, e obviamente com uma baixa estima na torcida. Viemos com esse processo, somos pessoas da cidade, comprometidas com o clube, parceiros que entenderam que era possível, sim, e por isso voltamos à gestão do clube – explicou Norton Boppré, figura histórica do clube, vestindo um paletó com broche do Figueira.

– No período posterior à nossa saída, outras direções, outros dirigentes, pessoas que não tinham aquele comprometimento, acabaram por construir a maior dívida da história centenária do Figueirense, atrapalhando bastante o processo de crescimento – completou.

Norton Flores Boppré, presidente do Conselho, e José Carlos Lages, diretor executivo do Figueirense — Foto: Diego Ribeiro

Norton Flores Boppré, presidente do Conselho, e José Carlos Lages, diretor executivo do Figueirense — Foto: Diego Ribeiro

As "outras direções" e "outros dirigentes" podem ser resumidos em uma palavra: Elephant. A empresa que assumiu o comando do clube em agosto de 2017 prometendo modernidade, times fortes e um contrato de 20 anos saiu pela porta dos fundos duas temporadas depois, deixando para trás dívidas, processos trabalhistas e a maior mancha da história do Figueirense: o W.O no jogo da Série B contra o Cuiabá, em 2019, no meio de uma greve dos jogadores por causa dos atrasos salariais.

Um mês depois do W.O., o clube ainda passou por outros episódios negativos, como plano de saúde cortado, renúncia coletiva do Conselho Administrativo e falta de comida e transporte para as categorias de base. Quase que milagrosamente, se salvou do rebaixamento à Série C na penúltima rodada. Em 2020, porém, não teve jeito: a queda veio.

– Ali foi a ponta do iceberg. O clube já vinha de más gestões, e quando as coisas já estavam bem complicadas entregaram na mão dessas pessoas. Muito triste acompanhar isso, até culminar na questão do W.O, foi o que chamou mais atenção, triste acompanhar e não poder ajudar – lamentou o goleiro Wilson, ídolo do clube, com passagem vitoriosa entre 2007 e 2012, e que voltou em 2022.

– Ninguém mais queria vir jogar no Figueirense depois do W.O. Você leva tanto tempo para construir uma imagem, e num piscar de olhos destrói tudo. A reconstrução é mais difícil – avaliou Lages.

Cláudio Honigman, último gestor da Elephant, não foi encontrado pela reportagem.

O início da reconstrução

O primeiro passo da reconstrução foi a constituição da SAF (Sociedade Anônima do Futebol) em dezembro de 2021. Ela é presidida por Paulo Prisco Paraíso e tem 100% das ações ainda nas mãos do Figueirense. Agora, o desafio é homologar a negociação das dívidas com os credores, algo que ocorreria com a recuperação extrajudicial que o Figueira teve aprovada pela Justiça no ano passado.

O problema é que, em segunda instância, a homologação foi rejeitada pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, o que suspendeu os efeitos da recuperação extrajudicial. As dívidas de natureza tributária já foram negociadas com Estado, Prefeitura e Governo Federal e vêm sendo pagas de maneira parcelada. Falta, agora, ter a liberação para acertar dívidas trabalhistas e cíveis.

Por apenas um dia, o Figueirense ficou impedido de contrair um empréstimo superior a R$ 10 milhões para operar o futebol em 2023.

– O negócio caiu, a operação caiu, e agora estamos paralelamente a isso buscando outras alternativas, não como a operação que estava para ser assinada, mas uma outra operação. Essas coisas não são rápidas. Exige muitas análises, contratos, obrigações. Nesse momento estamos buscando finalizar o processo, a definição do juízo, para então ir a mercado. Basicamente precisamos de recursos para fazer frente ao plano de recuperação – explicou José Carlos Lages.

– Para ter uma perspectiva interessante, continuar disputando um campeonato de forma competitiva, com chances, a gente precisa, para fazer o que está represado até o final do ano, de uns R$ 25 milhões – completou.

Para atrair investidores, o Figueirense apresenta sua história e patrimônio: a área de 30 mil metros quadrados que compreende o Estádio Orlando Scarpelli e seus anexos, outra área de 11 mil metros quadrados logo ao lado que tem um ginásio, agora de posse do clube após acordo com a prefeitura de Florianópolis, além de outros terrenos próximos.

Portão do Estádio Orlando Scarpelli, do Figueirense: patrimônio de 30 mil metros quadrados é principal ativo do clube — Foto: Diego Ribeiro

Portão do Estádio Orlando Scarpelli, do Figueirense: patrimônio de 30 mil metros quadrados é principal ativo do clube — Foto: Diego Ribeiro

Por isso, o clube contratou a Alvarez & Marsal, empresa especializada na recuperação e gerenciamento de companhias. Ela ajudou a atual diretoria na apuração das dívidas, ainda em 2020, participou da preparação do plano de recuperação e fará o "valuation" (espécie de levantamento do quanto vale o clube para o mercado) para que o Figueirense comece atrair investidores interessados nas ações da SAF.

Para tudo isso ocorrer, porém, é preciso "desbloquear" o processo de recuperação extrajudicial parado. A diretoria recorreu da decisão em segunda instância e espera resposta à sua defesa até o início de julho, com uma nova homologação da Justiça. Enquanto isso, o clube se vira.

– Nesse momento temos antecipado alguma receita, temos alguns recebíveis para daqui três, quatro meses, é essa ginástica que temos de fazer e fazemos até no nosso dia a dia em casa – contou José Carlos Lages.

– É o modelo, nesse momento estamos vendendo o almoço para jantar.

Torcida do Figueirense no jogo contra o Pouso Alegre — Foto: Diego Ribeiro

Torcida do Figueirense no jogo contra o Pouso Alegre — Foto: Diego Ribeiro

Um gol que valia R$ 60 milhões

A situação poderia ser bem mais tranquila se o Figueirense tivesse feito um golzinho contra o ABC, na última rodada do quadrangular final da Série C em 2022. Num Scarpelli lotado, o time só precisava furar a defesa rival uma vez para subir – e torcer para o Vitória não ganhar do Paysandu, fato que se consumou com um empate por 1 a 1.

No último lance, até o goleiro Wilson foi para a área. E nada. O 0 x 0 deixou o Figueira mais um ano na terceira divisão.

– Infelizmente o acesso não veio, com certeza hoje o clube estaria numa situação bem melhor. Quando a gente lembra aquele último jogo, lamenta muito, mas costumo dar o exemplo do fortaleza que ficou anos aí na Série C, bateu na porta três, quatro vezes para subir, jogando dentro de casa, perdendo acesso no último lance do jogo, e hoje a gente vê onde o Fortaleza está – analisou o goleiro.

Financeiramente, o acesso valeria o tão necessário fôlego ao Figueirense depois de anos a fio fechando no vermelho.

– Não ter subido no ano passado por um gol, poderia estimar que representou algo em torno de R$ 60 milhões: seria o dinheiro da TV, que na Série C não temos nenhum, mais essa possibilidade de criação da liga, para os clubes que estão na A e na B é uma solução espetacular – projetou José Carlos Lages.

– Imagino que se estivéssemos hoje na Série B, estaria muito melhor. Avalio, sim, tanto que lembro que dei uma entrevista depois daquele jogo, de cara deixamos R$ 20 milhões, foram 20 que ficaram para trás. Essa é a vida da bola...

Figueirense x ABC: Orlando Scarpelli lotou, mas não viu acesso do time da casa à Série B — Foto: Patrick Floriani/FFC

Figueirense x ABC: Orlando Scarpelli lotou, mas não viu acesso do time da casa à Série B — Foto: Patrick Floriani/FFC

Um ídolo e uma esperança: o acesso

Com mais de 300 jogos pelo Figueirense, o goleiro Wilson viveu momentos de glória no clube, acessos, vitórias na Série A, títulos catarinenses e a final da Copa do Brasil de 2007, contra o Fluminense. Hoje, aos 39 anos, voltou para ajudar dentro de campo, mas também fora dele.

Depois de passagens por Vitória, Atlético-MG e Coritiba, Wilson voltou em 2022 já num cenário financeiro grave do clube, mas aceitou o desafio por entender que seria peça importante. E é, ao liderar um elenco jovem em campo, devolver um pouco do orgulho do torcedor e participar ativamente de campanhas de captação de novos sócios.

– Com o meu retorno, o próprio torcedor, que estava triste, desanimado com a situação do clube, vendo a minha volta, muitos também recuperaram essa confiança, vendo que o trabalho da diretoria nessa reconstrução vem sendo bem feito, aos poucos, não é fácil. Eles encontraram o clube numa situação muito difícil. Muitos viram com bons olhos e expectativa esse meu retorno.

– A gente procura ajudar dessa maneira, com esse carinho e confiança que o torcedor tem, e a gente procurar de todas as maneiras, com campanhas, chamando o torcedor, campanha dos sócios e mostrando a importância que ele tem ao se associar, vindo aos jogos, apoiando – destacou.

Wilson no retorno ao Figueirense, em 2022: goleiro passa experiência de outros tempos aos mais jovens — Foto: Patrick Floriani/FFC

Wilson no retorno ao Figueirense, em 2022: goleiro passa experiência de outros tempos aos mais jovens — Foto: Patrick Floriani/FFC

Houve, sim, momentos de brilho nos últimos anos. Mesmo na crise, o clube venceu a Copa Santa Catarina em 2021 e a Recopa Catarinense em 2022, esta com vitória de virada sobre o Avaí, na Ressacada. O título estadual, porém, não vem desde 2018. A disputa da Série A, desde 2016.

Hoje, são cerca de 7.500 sócios ativos. O plano da diretoria é fechar o ano com 12 mil e manter uma média de 14 mil a 15 mil nas próximas temporadas. Meta que não é difícil de ser atingida, levado em conta o público que o Figueira atraiu na reta final da Série C do ano passado.

No jogo decisivo contra o ABC, o Scarpelli recebeu 19.307 pagantes. A capacidade máxima do estádio é de 19.500.

Agora, o clube ocupa apenas o 12º lugar na tabela da Série C – os oito primeiros avançam à próxima fase, após uma primeira etapa em turno único. Cabe ao técnico Paulo Baier (aquele!), contratado após a demissão de Roberto Fonseca, reorganizar o time e fazer, de novo, com que o Figueira tenha chances de subir. Para Wilson, representaria mais do que outro acesso em sua carreira:

– Não se trata só de uma conquista pessoal, e sim de sobrevida para uma instituição muito grande, centenária e com uma torcida muito forte. (...) O Figueirense é uma extensão da minha casa, voltei para ajudar nessa situação difícil. Espero que esse esforço não seja em vão.

Para Arthur Geske, o fundador da "Juntos pelo Figueira", é também o resgate de um sentimento:

– A sensação é de que a gente vai ter colocado um tijolinho ali. Ajudou um pouco na engrenagem. A gente sabe que o Figueirense vai voltar – avisou Arthur.

– O clube não vai viver de Pix, vai viver de o torcedor ser sócio, e o torcedor está voltando.

*GE