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Segunda-Feira, 12 de maio de 2025

Internacional

Como a onda de conservadorismo católico nos Estados Unidos desafiou o papa Francisco

Como a onda de conservadorismo católico nos Estados Unidos desafiou o papa Francisco

(Imagem: Vatican Pool/Getty Images)

A Igreja Católica tem enfrentado desafios nos Estados Unidos, país que reúne a quarta maior comunidade de fiéis da religião no mundo. E mesmo o papa Francisco não foi capaz de superar alguns deles. O seu pontificado progressista coincidiu com a ascensão de Donald Trump, um conservador, e com a revelação de casos de abuso na igreja americana.

Atualmente, os EUA só ficam atrás do Brasil, México e das Filipinas em número de católicos, de acordo com os dados mais recentes do Anuário Estatístico Eclesiástico do Vaticano.

Cerca de 20% dos americanos se autodenominam católicos, segundo o instituto de pesquisas Pew Research. O percentual tem se mantido estável desde 2014, mas é inferior ao de 2007, quando 24% se identificavam como católicos.

Com uma população de cerca de 267 milhões de adultos em 2024 nos Estados Unidos, estima-se que aproximadamente 53 milhões de americanos sejam católicos em todo o país.

Apesar de o número de católicos no mundo ter crescido de 1,254 bilhão em 2013, quando Francisco iniciou seu papado, para 1,378 bilhão em 2024, o avanço se concentrou em países do Sul Global, segundo o Anuário Eclesiástico. O aumento ocorreu em nações como Brasil, Filipinas, República Democrática do Congo e Nigéria, enquanto em regiões como Europa e América do Norte, houve estagnação ou queda.

A popularidade do papa Francisco também caiu nos Estados Unidos nos últimos anos. De acordo com o Pew Research, 75% dos católicos americanos tinham uma visão favorável sobre o papa argentino em 2024, abaixo do pico de cerca de 90% em 2015, quando o o pontífice visitou os Estados Unidos pela primeira vez, durante o governo de Barack Obama.

Igor Alves, doutor em História da Cultura e professor de Relações Internacionais da FAAP, avalia que a empolgação inicial com a chegada de um novo papa que prometia modernizar a igreja foi substituída pela frustração para parte dos fiéis americanos, quando eles notaram que Francisco era um papa progressista, que levava à Igreja temas que antes não eram discutíveis.

“Os fiéis mais conservadores começam a desconfiar do papado que Francisco propunha e dos caminhos que indicava para a Igreja. É natural essa queda de aprovação de 2015 para 2024, até porque a própria sociedade americana foi se tornando mais conservadora e o grande indicativo disso é a eleição de Trump, não uma, mas duas vezes nos últimos anos”, afirma Alves.

O professor acrescenta que com a polarização nos Estados Unidos e no mundo, as ações do papa passaram a ser vistas mais como atos políticos do que religiosos.

Em meio à ascensão do conservadorismo no país, organizações católicas tradicionalistas expandiram seu alcance, como a emissora católica Eternal Word Television Network e o The Napa Institute, grupo fundado em 2010 que organiza conferências com clérigos, executivos e líderes políticos com foco em agendas conservadoras.

Esses espaços se tornaram um terreno fértil para críticas ao papa Francisco em tópicos como mudanças climáticas, seus apelos para limitar a missas em latim e a aprovação de bênçãos para casais do mesmo sexo.

Até mesmo o estilo “mais informal” de Francisco também colidia com a visão mais ortodoxa de lideranças conservadoras, observa o professor da Faap.

“O papa era um latino-americano que falava sobre assuntos sérios, mas também falava sobre futebol, sobre a cachaça do brasileiro, de um jeito leve, brincando. E isso pode causar incômodo em países como os Estados Unidos, onde as pessoas costumam encarar a religião com um grau de seriedade que talvez não admita comentários como os que o Papa Francisco fez em alguns momentos”, afirma Alves.

O fortalecimento da corrente conservadora de católicos nos Estados Unidos ficou evidente no resultado das eleições em 2024.

Entre a comunidade católica, 59% votaram em Trump e 39% na democrata Kamala Harris, um aumento de 12 pontos percentuais em relação a 2020, de acordo com pesquisa de boca de urna realizada pela Edison Research.

Divergências entre Francisco e Trump

Três presidentes passaram pela Casa Branca nos 12 anos de papado de Francisco: os democratas Barack Obama e Joe Biden e o republicano Donald Trump.

A única visita de Francisco aos Estados Unidos como pontífice aconteceu em 2015, quando Obama quebrou o protocolo e foi recebê-lo na base aérea em deferência ao papa.

O pontífice evitava críticas diretas a Obama e Biden e preferia manter um tom diplomático com os democratas, mesmo diante de discordâncias, como a defesa do aborto. Já com Donald Trump, sua postura era mais mais contundente, especialmente em temas como imigração e meio ambiente.

Francisco evitava citar políticos diretamente, mas era um forte crítico das medidas anti-imigração de Trump. Em 2016, quando questionado sobre o projeto de Trump de construir um muro na fronteira com o México, Francisco disse: “Uma pessoa que pensa apenas em construir muros e não em construir pontes não é cristã.”

Em 2017, Trump foi recebido pelo papa no Vaticano. O republicano é protestante – assim como 40% dos americanos, por influência da colonização britânica – e se diz um homem muito fervoroso. Por isso, visitar o papa é uma forma de ele dialogar com esse eleitorado.

Isso também explica a decisão de Trump de viajar à Roma para acompanhar o funeral de Francisco. “A morte de um papa é algo que ‘para’ o mundo e como ele se diz muito religioso, ir ao Vaticano acaba ajudando na imagem pessoal do próprio Donald Trump”, afirma o professor da Faap.

O vice-presidente dos Estados Unidos, JD Vance, que se converteu ao catolicismo em 2019, foi o último líder estrangeiro a se encontrar com o papa antes de sua morte, no domingo.

Após se reunir com Vance, Francisco abençoou os fiéis e ainda atravessou a multidão no Vaticano em um carro aberto, contrariando orientações médicas de repouso. Na sua mensagem de Páscoa, lida por um assessor, o papa reiterou suas críticas a posições contrárias a imigrantes e pediu que líderes políticos “quebrem barreiras que criam divisões”.

Em fevereiro, antes de ser internado, o papa classificou as expulsões em massa de imigrantes nos Estados Unidos como uma “grande crise”. E refutou o uso do conceito teológico de “ordo amoris” por JD Vance. O vice-presidente americano interpretou o conceito como uma hierarquia de amor que prioriza a família para justificar a politica anti-imigraçao. Em uma carta aos bispos dos Estados Unidos, Francisco disse que “O verdadeiro ‘ordo amoris’ é a construção de uma fraternidade aberta a todos, sem exceção”

Em mais um sinal das divergências da gestão Trump e o papa Francisco, em março o presidente americano indicou como embaixador dos Estados Unidos na Santa Sé um líder católico conhecido por criticas ao papa. A indicação foi vista como uma tentativa de Trump aumentar a influência da ala conversadora da igreja americana no Vaticano e uma afronta ao papa Francisco.

Embates com cardeais

Outra razão apontada para a perda da popularidade de Francisco e da igreja católica nos Estados Unidos foram dois casos envolvendo cardeais americanos que geraram grande repercussão.

mais grave foi o de Theodore McCarrick, ex-arcebispo de Washington e nome proeminente na igreja americana, que enfrentou acusações de abuso sexual contra menores e seminaristas adultos.

Após uma investigação do próprio Vaticano, que detalhou os abusos entre as décadas de 1980 e 1990, McCarrick foi expulso do sacerdócio em 2019 pelo papa Francisco. A decisão foi vista como um passo importante na luta contra os abusos na Igreja, mas gerou questionamentos sobre a demora na responsabilização de membros do alto clero.

Francisco também teve um embate com o cardeal Raymond Burke, uma figura influente do setor conservador da Igreja nos EUA e crítico vocal das reformas e posturas do papa argentino.

Em 2023, o papa retirou de Burke os privilégios de ter um apartamento subsidiado no Vaticano e um salário como cardeal aposentado. A justificativa foi que ele estava usando esses privilégios contra a Igreja e não seria apropriado manter benefícios clericais para alguém que mina a autoridade do pontífice. A medida refletiu as tensões internas entre setores conservadores e a liderança atual do Vaticano.

Com a morte de Francisco, a relação entre os americanos e a Igreja agora passa por um novo teste. Considerando o alto nível de deflagração no cenário político do país, seja qual for o resultado do conclave, a tendência é de mais desafios pela frente.

*CNN/Blog Priscila Yazbek

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