Terça-Feira, 26 de novembro de 2024
Terça-Feira, 26 de novembro de 2024
A Polícia Federal investiga o relato do ex-ajudante de ordens da Presidência Mauro Cid de que Jair Bolsonaro atuou diretamente na discussão da elaboração de um decreto golpista para impedir a troca de governo após as eleições de 2022. Segundo depoimento do tenente-coronel, o ex-presidente pediu alteração em uma minuta de documento que determinava a prisão de autoridades e a realização de novas votações no país. O militar fechou um acordo de delação premiada com a PF, homologado pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF). Os fatos narrados na colaboração estão sendo checados pelos investigadores. Procurada, a defesa de Bolsonaro disse que não vai comentar, porque não teve acesso ao material.
Segundo três pessoas com acesso ao teor do depoimento, Cid contou à PF que Bolsonaro recebeu de Filipe Martins, ex-assessor da Presidência, uma minuta de um decreto golpista com diversas páginas elencando supostas interferências do Poder Judiciário no Executivo e propondo medidas antidemocráticas. O esboço desse documento, de acordo com o militar, terminava com a determinação de realização de novas eleições e a prisão de autoridades, sem especificar quem executaria a ação.
Após ler a minuta, de acordo com o relato de Cid, Bolsonaro pediu para alterar parte da estrutura do texto, mantendo a convocação de novas eleições e apenas a prisão de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). As demais autoridades relacionadas no decreto foram excluídas. O ex-ajudante de ordens afirmou aos investigadores que só soube da existência do rascunho do documento quando Filipe Martins lhe apresentou uma versão impressa e em formato digital para que fossem feitas as mudanças pedidas pelo ex-presidente.
O próprio Martins, segundo relato de Cid à PF, retornou dias depois com uma nova versão do texto com a alteração solicitada por Bolsonaro. Ainda de acordo com o ex-ajudante de ordens, o ex-presidente concordou com a mudança feita na minuta e mandou chamar os comandantes das Forças Armadas para discutir a medida antidemocrática. Procurado, o advogado de Cid disse que desconhece a informação. Martins não foi localizado.
Como revelou a colunista do GLOBO Bela Megale, no encontro entre Bolsonaro e os chefes das Forças Armadas, o almirante Almir Garnier Santos, então comandante da Marinha, teria dito ao ex-presidente que seus homens estavam prontos para aderir a um chamamento. Já o então responsável pelo Exército, general Freire Gomes, afirmou que não embarcaria em um eventual plano golpista. Procurado por telefone e por meio do Ministério da Defesa e da Marinha, Garnier não foi localizado. A Marinha reiterou em nota que “eventuais atos e opiniões individuais não representam o posicionamento oficial da Força”.
O ex-ajudante de ordens disse à PF, de acordo com os relatos feitos ao GLOBO, que a ideia não foi colocada em prática devido à falta de apoio tanto do general quanto do comandante da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Junior.
Na delação, Cid contou também que Bolsonaro realizou várias reuniões com generais fora da agenda oficial depois do segundo turno das eleições. Segundo ele, o ex-mandatário não queria que seus apoiadores deixassem os acampamentos em frente aos quartéis porque acreditava que encontraria provas de fraude nas urnas eletrônicas — o que nunca ocorreu — e precisava manter o apoio popular para contestar o processo eleitoral.
A delação premiada de Cid é considerada um ponto de partida das investigações da Polícia Federal, que tenta avançar em outros elementos que corroborem as informações repassadas pelo ex-ajudante de ordens.
Uma dessas provas, obtida pela CPI do 8 de janeiro, é um e-mail do tenente-coronel listando uma série de decisões do TSE e do STF “em desfavor” do ex-presidente. O documento foi digitalizado e recebido pelo militar em 6 de novembro de 2022, uma semana após a derrota nas urnas do então chefe do Executivo. No fim daquele mês, Cid enviou para si mesmo no WhatsApp uma minuta golpista fazendo referências a “decisões inconstitucionais do STF”. A PF apura se há alguma relação desse material com o decreto golpista apresentado por Filipe Martins.
O texto encontrado pela PF no celular de Cid aponta, sem fundamento, que “decisões ilegítimas e inconstitucionais” do STF ferem o “princípio da moralidade”, pondo “em evidência a necessidade de restauração da segurança jurídica e da defesa às liberdades em nosso país”. Ainda de acordo com a minuta, isso justificaria a decretação de um “Estado de Sítio” para “restaurar” o Estado Democrático de Direito no país.
A Polícia Federal também analisa áudios e mensagens de Cid e aliados de Bolsonaro que, segundo os investigadores, reforçam a suspeita de que havia um plano de golpe de Estado. Nesse material, há menções sobre a possibilidade de intervenção militar no fim do ano passado e também da prisão de Moraes.
De acordo com mensagens obtidas pela PF, a trama golpista insuflada por apoiadores de Bolsonaro envolvia contornar a resistência do Comandante do Exército em contestar o resultado das eleições e convencer o Comando de Operações Especiais de Goiânia (GO), formado pela tropa de elite da caserna, a tomar alguma medida para evitar a troca de governo.
As mensagens descobertas pela PF no celular de Cid foram determinantes para que o ex-ajudante de ordens fechasse um acordo de delação premiada após quatro meses preso por se envolver em uma suposta fraude de cartões de vacinação de familiares e de Bolsonaro no Sistema Único de Saúde (SUS). Encurralado pela investigação, o militar decidiu contar os principais fatos que observou no fim do governo, especialmente após o resultado das eleições de 2022.
A Polícia Federal também investiga se o general da reserva Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e candidato a vice na chapa Bolsonaro no ano passado, atuou como elo entre o ex-presidente e integrantes dos acampamentos montados em frente aos quartéis do Exército que pediam intervenção militar após a vitória do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Conforme revelou O GLOBO na segunda-feira, a apuração tem como base o depoimento de Cid.
Procurado, Braga Netto afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que desconhece o teor da delação e não pode se manifestar sobre processo sigiloso.
De acordo com o relato de Cid à PF, Braga Netto costumava atualizar Bolsonaro sobre o andamento das manifestações golpistas e fazia um elo entre o ex-presidente e integrantes dos acampamentos antidemocráticos.
Reportagem do site Metrópoles, publicada em novembro do ano passado, exibiu fotos de pessoas que estavam acampadas em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília, frequentando a casa onde funcionou o comitê de campanha da chapa Bolsonaro-Braga Netto. Na ocasião, o ex-ministro da Defesa dava expediente no local.
No dia 18 de novembro, na mesma semana em que os manifestantes foram flagrados no comitê de campanha de Bolsonaro em Brasília, Braga Netto saiu para cumprimentar e tirar fotos com apoiadores em frente à residência oficial após visitar o ex-presidente. Naquela ocasião, o militar pediu a eles para “não perderem a fé”
— Presidente está bem, está recebendo gente. Vocês não percam a fé, tá bom?! É só o que eu posso falar agora — declarou ele.
Em seguida, uma apoiadora disse ao general, aos prantos, que bolsonaristas estavam “na chuva e no sol” nos acampamentos. Braga Netto, então, respondeu:
— Eu sei. A senhora fica... Tem que dar um tempo, eu não posso conversar.
As declarações foram filmadas, disseminadas por diferentes redes bolsonaristas e interpretadas pelos apoiadores do ex-presidente como um pedido para que as estruturas em frente aos quartéis não fossem desmobilizadas àquela altura.
*O Globo