Quinta-Feira, 28 de novembro de 2024
Quinta-Feira, 28 de novembro de 2024
É do poeta libanês Khalil Gibran (1883-1931) a frase: "Do sofrimento surgem as almas mais fortes; os personagens mais massivos estão marcados por cicatrizes". No primeiro dia do cessar-fogo firmado entre o movimento xiita Hezbollah e Israel, dezenas de milhares de libaneses começaram a retornar para o sul e para o leste do país carregando suas cicatrizes. Filas gigantescas de carros congestionaram a rodovia que liga Beirute ao sul. Motoristas cantavam e buzinavam. Alguns carregavam a bandeira amarela e verde do Hezbollah, além de fotos do cofundador, xeque Hassan Nasrallah, morto durante um bombardeio israelense ao QG do grupo, em 27 de setembro.
Por meio de um comunicado, o movimento xiita, também conhecido como "Partido de Deus", quebrou o silêncio sobre a trégua e proclamou vitória na guerra contra Israel. "A vitória de Deus, Todo-Poderoso, foi a aliada da causa justa", afirmou a facção pró-iraniana, ao alertar que os milicianos continuam mobilizados para o combate.
O Exército do Líbano confirmou que "começou a reforçar sua presença" no sul do Líbano, bastião do Hezbollah, próximo ao Rio Litani, a 30km da fronteira com Israel. Um jornalista da agência France-Presse relatou ter presenciado tropas e veículos do Exército em duas regiões do sul do país. As Forças de Defesa de Israel (IDF) advertiram que qualquer violação do acordo de cessar-fogo será "respondida com fogo". Também anunciaram a restrição de movimentos durante a noite. Principal aliado do Hezbollah e responsável pelo fornecimento de armas e de dinheiro, o Irã comemorou o "fim da agressão israelense".
Nesta quarta-feira (27/11), tropas israelenses chegaram a disparar em direção a pessoas que tentavam se aproximar de vilarejos no sul do Líbano, segundo o jornal The Times of Israel. O ministro da Defesa israelense, Israel Katz, determinou que os soldados atuem de forma enérgica para impedir combatentes do Hezbollah de retornarem para a região. O acordo de cessar-fogo prevê uma retirada progressiva durante 60 dias dos combatentes do Hezbollah e das tropas israelenses do sul do Líbano, na fronteira com Israel, explicou o enviado americano Amos Hochstein.
Reações
Morador de Tiro (a 80km ao sul de Beirute), o médico radiologista Omar Khaled, 71 anos, retornou de Beirute no último domingo (24/11), depois de permanecer um mês na capital. "Voltei antes do cessar-fogo, porque havia muito trabalho no hospital e fui convocado. O que mais me chamou a atenção aqui é o nível de destruição. Vários prédios foram reduzidos a pilhas de escombros. Tem muita gente voltando. Quando chegam, as reações são diversas: alguns moradores demonstram alegria; outros, tristeza, ao chegarem em casa e não encontrarem nada. Fiquei impactado ao ver pessoas sobre as ruínas, procurando pertences", disse ao Correio, por telefone. Khaled deposita esperança na trégua e acredita que a reconstrução do país demandará muito tempo. "Há vários Estados envolvidos e interessados na estabilidade da região."
Desde 17 de setembro, o cirurgião Nasser Farran permanece na sala de operações do Hospital Hiram, também em Tiro. "Muitas pessoas estão retornando para os seus lares, principalmente aquelas cujas casas se mantêm habitáveis. O problema é que, aqui na cidade, não temos mais fornecimento de água", contou à reportagem, também por telefone. "Há muita destruição em Tiro, é algo impressionante. Esta foi a guerra que mais devastação trouxe à região de Tiro." Segundo ele, aqueles que perderam suas casas receberam abrigo de familiares e amigos. "A maior parte da população está retornando. Mas as bases do cessar-fogo ainda não estão claras. Creio que, caso o Hezbollah cumpra com os requisitos da Resolução 1.701, imagino que possa haver uma trégua ou uma tranquilidade a longo prazo. Isso dependerá não apenas do Líbano, mas da conjuntura internacional, como a eleição de Donald Trump."
"Apesar da magnitude das destruições e do nosso sofrimento, estamos felizes por voltar", afirmou à agência France-Presse Um Mohamed, viúva de 44 anos da aldeia de Zabqin (sul), que tinha se refugiado em uma montanha perto de Beirute. "Sentimos que estamos renascendo", acrescentou.
Brasília
A 10,4 mil quilômetros de Kalia, no Vale do Bekaa, sudeste do Líbano, o comerciante Khaled Nasser, 54 anos, espera retornar à terra natal. Em breve, ele planeja viajar de Brasília, onde mora desde 2002, para visitar os túmulos do irmão Raef, 44, e da sobrinha Mirna, 16, mortos em um bombardeio israelense. "Também quero ficar perto de meus pais e minhas irmãs. Pelo menos 60% de nossa cidade foi destruída. Meus pais e minhas irmãs saíram de Kalia apenas com a roupa do corpo e se tornaram refugiados. Dormiram na rua. Não havia lugar seguro no Líbano", lamentou ao Correio.
Os pais de Khaled retornaram para Kalia; as irmãs não conseguiram, porque suas casas foram danificadas. "Não tem luz, não tem água, nem comida. Meu pai nasceu e cresceu em Kalia, onde planta oliveiras com o meu avô para colher azeitonas. Esse ano não conseguiram colher nada, pois tudo foi destruído. Estão sem renda."
Mesmo distante da guerra, o coração de Khaled permaneceu no Líbano. "Os últimos dois meses foram terríveis. Muita preocupação com quem ficou lá. A gente não dorme direito, não trabalha direito, é estressante, sofrido. O mundo não é justo, amigo", desabafou. O libanês faz um pedido para o governo brasileiro. "Que o Brasil atue para que o Oriente Médio tenha paz. O Brasil tem capacidade e esperamos que isso ocorra."
"Se a guerra vai parar ou continuar, não sabemos. São os grandes que sabem falar sobre isso. Os países que mandam no mundo. Nós temos que nos cuidar e nos preocupar com os familiares. Espero que tenhamos uma paz justa, para todo mundo viver bem e cada um no seu direito. Por que não é igual aqui no Brasil? Queremos que ninguém mais faça guerra."
Khaled Nasser, 54 anos, comerciante em Brasília, nascido em Kalia, no sudeste do Líbano
DEPOIMENTO
Uma rodada da guerra terminou
"Israel nos acostumou a uma destruição bárbara e injustificável. Moro em Doura, subúrbio xiita no sul de Beirute. Retornei para casa hoje (27/11). Ela foi seriamente danificada e tornou-se inabitável. Estou abrigada na casa de um parente. A região onde vivo não foi alvo de deslocamento forçado, mas decidi partir porque o inimigo tinha feito alertas sobre a nossa área. É uma situação triste, pois eles (israelenses) alegam que bombardeiam instalações do Hezbollah, mas apenas destruíram prédios residenciais. Durante o retorno a Doura, fiz uma foto segurando a bandeira do Hezbollah. Essa imagem significa muito para mim, é uma vitória. Nós derrotamos um inimigo que tem um dos exércitos mais fortes do mundo.
Os piores momentos da guerra são quando você perde um membro de sua família por causa dos crimes do inimigo. Quanto ao Hezbollah, eu o considero uma resistência humana e honável. Durante a guerra, perdi um professor, atingido por um bombardeio no momento em que lecionava. Orgulhosamente, o Hezbollah recebeu muitos golpes. Apesar dessas feridas, ele se tornou e ficará mais forte. Espero que o cessar-fogo funcione. Ninguém é capaz de decidir o curso da guerra, mas as coisas serão deixadas por conta própria. Uma rodada da guerra terminou."
*Correio Braziliense