Terça-Feira, 26 de novembro de 2024
Terça-Feira, 26 de novembro de 2024
Uma coletânea mundial de pesquisas indica ao menos 20 quadros de saúde que podem ser tratados com cannabis, e também efeitos adversos que merecem mais estudos. As evidências científicas se somam ao uso cada vez mais frequente da planta para fins medicinais. Se o contexto aponta para a maior demanda e também para a necessidade de avanço científico, por que a cannabis medicinal ainda não foi regulamentada?
Para responder esse questionamento, o g1 conversou com três especialistas em pesquisa sobre cannabis medicinal:
Para elas, os preconceitos atribuídos à planta ao longo de décadas e os entraves que prejudicam as pesquisas estão entre as principais limitações.
Nesta reportagem, você vai saber:
(Esta reportagem faz parte de uma série especial do g1 Campinas sobre cannabis medicinal, que explica quais são os caminhos e desafios para ter acesso a esses produtos hoje no Brasil e mostra iniciativas individuais ecoletivas e pesquisas na região).
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), os pacientes que possuem prescrição médica para uso da cannabis com fins medicinais têm dois caminhos regulamentados atualmente no Brasil: a compra de produtos autorizados e a importação. Entenda melhor como funciona cada um deles acessando esta reportagem
Já no cenário internacional, a Comissão Internacional de Drogas Narcóticas retirou, em 2020, a cannabis da lista de substâncias mais restritiva após uma recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Na prática, a decisão não retira a necessidade de os países estabelecerem controles contra a proliferação da droga.
Porém, com a reclassificação, a maconha deixa de ocupar uma lista de substâncias consideradas "particularmente suscetíveis a abusos e à produção de efeitos danosos" e "sem capacidade de produzir vantagens terapêuticas", embora o valor terapêutico ainda não seja oficialmente considerado.
Para Monique Oliveira, esse é um primeiro passo, mas mudanças podem ser lentas porque:
Ao menos dois projetos de lei tramitam sobre o tema no Congresso, nenhum com previsão de ir à votação:
➡PL 5511/2023: busca autorizar a produção e o cultivo de cannabis para fins medicinais, além do cânhamo industrial e os produtos derivados dele. Atualmente, está em discussão na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária.
➡PL 89/2023: cria a Política Nacional de fornecimento gratuito de medicamentos formulados de derivado vegetal à base de sanabidiol, em associação com outras substâncias canabinoides. Segue em tramitação no Comissão de Assuntos Econômicos.
E no CFM? Em outubro de 2022, o Conselho Federal de Medicina (CFM) suspendeu uma resolução publicada 10 dias antes que proibia que fossem receitados "quaisquer outros derivados (da cannabis sativa) que não o canabidiol" e vedava aos médicos a prescrição do canabidiol para outras doenças além da epilepsia, exceto se o tratamento fizer parte de estudo científico.
Segundo a psiquiatra Ana Hounie, desde a suspensão da resolução, o debate não andou no conselho. "A gente fica numa insegurança jurídica e ética, porque o Conselho Federal de Medicina não está ainda se posicionando claramente", afirma.
O g1 perguntou ao CFM se houve avanço no debate sobre a regulamentação e se há previsão de uma nova resolução. Até a noite de sexta-feira (23), a resposta do conselho foi de que a demanda havia sido recebida.
Manifestantes realizam Marcha da Maconha no Centro de Campinas em 2014 — Foto: Giulia Cirilo/G1 Campinas
Segundo Angela Aboin, mestranda em desenvolvimento humano e tecnologias na área de autismo e cannabis na Unesp, até a década de 1930, o uso da maconha era permitido no Brasil e aparecia em livros como solução para condições que, naquela época, ainda não tinham nome.
"Ensinavam o cultivo, a fazer extração. Não se tinha o nível de diagnóstico que temos hoje, mas já era usado para tratar o que conhecemos como epilepsia", comenta Angela Aboin.
Nos Estados Unidos, o lobby contra a planta teve início durante a 2ª Guerra Mundial, segundo a médica Ana Hounie. A pesquisadora afirma que a indústria do nylon lutou contra o uso da fibra do cânhamo, uma variedade da cannabis usada na produção principalmente de cordas.
Foi por meio da xenofobia contra mexicanos e da ligação da planta com africanos que a substância começou perder espaço para o preconceito nos Estados Unidos. Em 1938, acabou proibida em todo o território nacional.
Hounie acrescenta, ainda, que a relação da planta com os africanos que a introduziram no Brasil também foi origem de preconceito. "O uso da maconha era associado aos escravizados", contextualiza.
Monique Oliveira, que também é jornalista e divulgadora científica, detalha que muitos valores foram associados à cannabis e, embora pesquisas mostrem benefícios, ainda faltam reflexões.
"A cannabis, para além de ser uma substância e uma planta, é uma categoria social. Significa que você tem uma série de imagens e narrativas que foram construídas ao longo do tempo que, agora, cada indivíduo, cada setor de saúde, cada instituição, precisa se perguntar se essas percepções e narrativas estão de acordo com as evidências que estão sendo mostradas", afirma Oliveira.
Atualmente, a busca pela regulamentação do uso desencadeia atos como a Marcha da Maconha, que defende que a planta pode trazer diversos benefícios para crianças e adultos.
Folhas de cannabis — Foto: Carlos Jasso/Reuters
Juntos, os fatores morais e a falta de regulamentação viram entrave para a ciência, apontam as pesquisadoras.
Isto porque pesquisadores e laboratórios também podem encontrar dificuldades para comprovar a eficiência terapêutica da cannabis. Uma vez que a planta é proibida, mantê-la armazenada para pesquisar ou realizar ensaios clínicos sem autorização configura crime.
Logo, ter apoio para estudar o tema também é difícil.
"Para fazer pesquisa, você precisa ter a matéria-prima. Mas, se a matéria-prima que você precisa é o THC, e no Brasil é proibido cultivar o THC, como é que fica?", questiona a médica Ana Hounie.
A psiquiatra Ana Hounie — Foto: Divulgação
“Por falta da regulamentação completa, nós pesquisadores não conseguimos trabalhar. Já vi vários depoimentos de alunos que querem pesquisar isso, mas quando pedem financiamento, pedem aprovação, são barrados”, completa a psiquiatra Eliane Nunes, fundadora da Sociedade Brasileira de Estudos da Cannabis Sativa (SBEC).
“Então, se nós tivéssemos uma regulamentação redondinha, a gente estaria não só pesquisando, mas produzindo, produzindo muito. Hoje tudo é feito por base de liminar, mas deveria ser regulamentar. Deveria existir uma regulamentação que deixasse claro o que é liberado para pesquisa”, completa.
Ana Hounie lembra que a Universidade de Santa Catarina conseguiu uma liminar que permitiu o cultivo para pesquisa. "Mas se o Congresso finalmente liberasse o cultivo para pesquisa e para as associações cultivarem e produzirem os remédios que os pacientes usam, seria muito melhor".
A falta de investimentos também atrapalha. "A gente tem pesquisa básica sendo produzida, alguns ensaios e alguns estudos clínicos também, mas para você chegar numa parceria, para você ter produção, vai ser iniciativa privada. Quem vai ter mais condições de oferecer a um preço acessível? Vai ser um laboratório público?”, questiona Monique.
Por isso, Angela Aboin defende que as associações, que buscam pesquisar e desenvolver soluções medicinais acessíveis, entrem na conta.
“A indústria não precisa de apoio. Ela já tem apoio próprio, ela já tem verbas, mas as associações não têm. A gente entende que precisa ter uma aproximação dos poderes públicos para poder, não só produzir, mas produzir com segurança, eficácia e respeito”, aponta Aboin.
Trabalhador colhe folhas de maconha em plantação perto de Nazaré, em Israel. Apesar de ser considerada uma droga ilegal no país, a maconha é usada legalmente por israelenses com propósitos medicinais. — Foto: Amir Cohen/Reuters
E afinal, o que seria o ideal para o Brasil? Ana Hounie é taxativa. "O ideal seria a permissão do cultivo aqui no Brasil para fazer pesquisa e pelas associações".
"Hoje em dia tem várias associações que estão trabalhando com desobediência civil, cultivam e produzem, e muitas têm processo já na Justiça pedindo a autorização, algumas receberam, outras não", completa a pesquisadora.
Ela indica como modelo internacional a experiência de Israel, onde, segundo ela, o governo tem um programa de cannabis medicinal em que os médicos que querem trabalhar precisam fazer curso e obter certificação para poder estar na lista dos que prescrevem o tratamento.
"Então não é qualquer médico que vai prescrever, é muito controlado, você tem que fazer o curso, tem que demonstrar que tem conhecimento e o governo subsidia os remédios. Você tem conhecimento e tem produtos à disposição para serem comprados e também para serem fornecidos pelo próprio governo, e eles estão cada vez mais ampliando as indicações, então eu acho que o modelo de Israel é um modelo excelente", completa.
Eliane Nunes assinou uma moção apresentada na 5ª Conferência Nacional de Saúde Mental Domingo Sávio em dezembro de 2023. No texto, a psiquiatra apresenta propostas que pudessem guiar a regulamentar e desburocratizar o acesso à maconha medicinal.
Entre os principais pontos citados pela especialista estão a retirada da cannabis da lista de plantas proibidas e a autorização do cultivo, isto é, sem que o interessado precise acionar a Justiça. O manifesto foi validado pelo Conselho Nacional de Saúde na quarta-feira (21).
Isso significa que ele pode ser levado em consideração para a criação de políticas públicas e novas regulações. “Regulamentação existe hoje, mas ela funciona para quem tem dinheiro para comprar na farmácia ou importar. Ela não é justa para pacientes que podem fazer o seu cultivo em casa e ela não é justa para o Sistema Único de Saúde, que paga para atender demandas judiciais”.
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Angela Aboin, que também é coordenadora da Federação das Associações de Cannabis Terapêutica do Brasil (FactBrasil), acredita que é necessário tirar o tema do sentido criminal e elevá-lo a uma questão de saúde pública.
A partir disso, para ela, a informação será o principal caminho para uma mudança que atinja a todos, da população em geral aos tomadores de decisões.
“Precisamos dar liberdade para as pessoas falarem. É básico e está dentro da descriminalização. Isso é essencial para que a gente possa construir novos conceitos em relação à planta. Precisamos educar as pessoas sobre para que serve a maconha. Precisamos construir uma nova política de droga, que é fundamental para evolução da sociedade”, afirma Aboin.
Já Monique Oliveira lembra que ainda é preciso cautela. "Ter uma percepção super valorizadora da cannabis, como se fosse benéfica para tudo, ou uma percepção de que não serve pra nada, não é bem assim. Para quê serve, para quem serve, como serve?", indaga.
A doutora afirma que, para além do ativismo, é preciso definir objetivos e lutar por evidências. Afinal, o que esperamos da maconha medicinal? É por meio da ciência que a saúde, como um todo, e pacientes encontrarão respostas e serão beneficiados.
“Quando a gente sai de um debate um pouco mais polarizante e chega a pensar nos nossos objetivos, pensar no que a gente quer alcançar e quais são os riscos para cada situação, a gente consegue um debate que ajuda melhor as pessoas”.
*G1